sexta-feira, 17 de setembro de 2010
O “TRINTA VENENOS”
Não havia poça de água, deixada pela chuva, que ele não quisesse tapar com as botas.
A bata que vestia para a escola - que há 1 segundo atrás era branca – ficava minada de pingentes de lama castanha que eram prenúncio de uma saraivada de estaladas, com que a mãe, cansada de tanto avisar, o haveria de premiar, logo que chegasse a casa.
Mas o “trinta venenos”, comia e calava. Já estava habituado…e a mãe também. O pai perdera-o poucos anos depois de o ter conhecido, e só Deus sabe a falte que ele lhe fez.
No trajecto, a caminho da escola, Berto arranjava sempre maneira de chegar atrasado. Não é que saísse tarde de casa, porque a mãe cautelosa, sempre o acordava a horas decentes para se ajeitar para a escola. Mal acordado, comia à pressa, quase sempre o mesmo, pegava na mala e zarpava.
Já na sala, lembrava-se vagamente de ter passado pela casa de banho, que à época, era pouco mais do que o sombrio espaço onde se expunha uma sanita solitária que recebia os líquidos orgânicos da noite, trazidos no bacio de plástico, que em bebé se lhe colava às nádegas gordas, desenhando na perfeição, um circulo perfeito. Não se recorda se lavava os dentes, (modernices) e mesmo a cara, a ver pelas ramelas que lhe caem, verdinhas, sobre o caderno da redacção, provam-lhe que a água da torneira da “pinta azul”, nem lhe passou pela fronte.
No Inverno, as poças que tanto o atraíam, gelavam e nessa altura Berto baixava-se pegava com jeito naquela espécie de vidro líquido e olhava-o com admiração, tentando perceber o fenómeno nocturno que tinha deixado a água congelada e a terra polvilhada com um fino manto branco.
O trajecto era uma doce aventura. Não tanto a ida, mas mais o regresso da escola. Mesmo o que não se mexia, como os torrões da borda da estrada, eram pontapeados com requintes de ponta de lança, descarnando as biqueiras das únicas botas que alguma vez tivera, deixando no ar um prolongado “gooooooooolo” e o som oco da terra a desfazer-se em mil grãos.
Característico deste pequeno amigo, eram as “duas velas” esverdeadas que lhe pendiam das narinas sempre que o frio entrava pela pouca roupa que frequentemente trazia vestida. As ditas, subiam e desciam até ao lábio, formando dois pequenos pilares de jade translúcido e, sempre que estas se aproximavam perigosamente do “beiço”, Berto inspirava instintivamente, fazendo ambas desaparecer como num passe de mágica. De tantas vezes fazerem o percurso ascensorial, as ditas velas, misturadas com o pó do caminho, pareciam-me agora castanho-esverdiados.
A bata, que estava longe de ser imaculadamente branca ou limpa, apresentava quase sempre mais casas que botões, o que o forçava, ao abotoar, a alterar a lógica estabelecida, parecendo que a mesma tinha sido costurada para um “corcunda das costas”. E mesmo aquela espécie de presilha, que decorava a parte de trás da bata - que ainda hoje questiono para que raio servia – tinha dificuldade em manter-se cosida.
Digamos que ao Berto nunca haveria de calhar um prémio pelo atavio, nem qualquer outro prémio escolar, embora fosse o mais premiado de todos nós, pelas vezes sem conta com que esticava as mãos ao castigo. Numa coisa ele era o maior, apesar da fraca-figura, tratava-se da forma estóica com que aguentava a bravura da régua de encontro às pequenas mãos, ao contrário do calmeirão “burro-da-escola”, que fungava sempre que o pequeno ditador da sala o chamava ao quadro de ardósia. A sua cabeça, quase adulta, servia de badalo e, volta e meia, accionada pelo braço-relâmpago do professor, embatia na lisura da pedra negra, que imediatamente a repelia, fazendo do pescoço gordo do Quinzão a mola recuperadora da sua redonda cabeça. Se o Prof. Seles estivesse bem disposto, coisa rara num cinquentão empedernido, o grandão haveria de sair apenas choroso e não humilhado. Para afastar os demónios de infância, Quinzão alistou-se na Polícia.
Voltemos ao Berto, grande peça de artilharia costeira, grande amigo de infância, pobre rapaz feito homem, perdido nos seus pequenos pecados, lembrado como um dos que cresceu com a infância hipotecada pela madrugadora morte do pai, apanhado nas teias do trabalho precário e das drogas que o tornaram num ser transparente e pouco acreditado.
Precocemente envelhecido, este herói dos tempos de escola, sempre de bata desalinhada, continua perfilado à direita e à frente, naquela velha fotografia de grupo, carcomida pela luz dos tempos onde, incompreensivelmente o autocrático professor, fez questão de não aparecer.
Afinal o “trinta venenos” não era mau rapaz.
domingo, 5 de setembro de 2010
LOJA DO CHINÊS
De tanta coisa que tem, ficamos com os olhos em bico.
Primeiro foram os restaurantes, que pulularam por tudo quanto é sítio e nos deram a provar; “clépe chinês”, “clépe xelado”, “alôs blanco” (ou xau xau), “massa dalôs cumgambachs”, “ananás flesco cumgambachs”, “pato àpekim”, entre algas do mar e rebentos de cana.
Da mesma forma que acreditamos que qualquer terrinha tem sempre o seu Café Central e que, ao conduzirmos de noite, existe sempre estrada à nossa frente, também somos levados a crer que qualquer cidade deste país, aberto à multiculturalidade, à integração e ao comércio internacional, tem também o seu “el corte chinês” (passe a publicidade).
São corredores e mais corredores, salas e recantos labirínticos, cruzamentos e entroncamentos de prateleiras repletas de cima abaixo de artigos variados e coloridos, que nos confundem na escolha e nos obrigam a esbarrar, quase sempre, contra uma inutilidade qualquer que está longe de nos fazer falta.
Que felicidade a nossa. Nossas Senhoras de Fátima fosforescentes, flores de plásticos sempre frescas, golfinhos em vidro transparente e outros animais da quinta, camisolas do Ronaldo (na versão CR7 e CR9), quadros com ”mariposas mumificadas”, guarda-chuvas, guarda-sóis, barretes de lã e dos outros, lingerie e babydolls para embeiçar os tolinhos, bandeiras de Portugal (com castelos às avessas), coletes reflectores em laranja e verde eléctricos, coisas de uso da casa, vasos, vasinhos e potes, tudo a preço de saldo, pilhas e baterias, telas esticadas à pressa, velas de todas as cores e cheiros (pergunte se têm de urtiga branca, ou de figueira-do-inferno) colheres de trolha e níveis, com bolha ou a laser, espanadores pró pó, (que deviam chamar-se “espanhadores”), enfim, artigos de “roupa e lar”, sempre ao melhor preço, sempre a preço de saldo. Que felicidade a nossa.
Um amigo do meu Amigo, que é cultor do bom gosto, entra sempre, pelo Natal, numa espécie de saudável competição, onde a troca de presentes entre a família mais chegada, prima curiosamente, pelo, mau gosto. Como, perguntais vossas mercês? Simples, cada um tenta surpreender o outro com a peça mais “pirosa” encontrada na loja do chinês, o que, refira-se, não é fácil, dada a quantidade e qualidade da
oferta.
E dessa forma, lá se vão surpreendendo uns aos outros. Com aquele álbum fotográfico encapado a pêlo violeta, que fica bem com a coberta da cama, o par de golfinhos azul-celeste envoltos no seu namoro aquático em contorcidas ondas de vidro que as empregadas da casa desejam partir sempre que lhe limpam o pó, bichos de pelúcia laranja e fuschia, maiores que o King Kong, canecas pró pequeno-almoço, que nos deixam sem apetite, porta-fotos esquisitos que nos cercam a cara de flores de lótus, porta-chaves estúpidos que nos furam os bolsos das calças e um sem número de pequenas pérolas do mais profundo mau gosto.
Mas eles sabem fazer bem. Devemos-lhe as palavras sábias do Confúcio, a invenção do vidro, do papel, ou da pólvora, coisas simples como a normalização da distância entre o eixo das carroças, para manter os trilhos transitáveis, enfim, deram-nos cartas.
Feriado ou dia santo, para o chinês isso “é tinto”, por isso, os “biblot-dependentes” e os “enrrascados crónicos”, podem sempre contar com o seu robótico “obligadô” na entrega do talão. (espera lá, preciso de sacos pró lixo e de uma coleira pró cão…)
A Adriana “partimpim” Calcanhoto, lá vai “refrando” na sua canção, que “chinês, só como uma vez por mês”.
Discordo, acho que são duas.
quarta-feira, 11 de agosto de 2010
O MEU MELHOR AMIGO
Às vezes estamos longe e cansados e pensamos tanto nele, mas tanto mesmo, em particular naquelas tardes de verão, depois de almoço, em que o “catalão” e a cebola crua da salada nos aflora à boca na forma sonora de uma vuvuzela, para não falar no indigesto pepino às rodelas, que dávamos tudo para o ter por perto.
Quando as pálpebras, obedecendo à lei da gravidade dos corpos, que os atrai para baixo, se tornam pesadas; ansiamos tanto, mas tanto mesmo, deitarmo-nos sobre ele e languidamente dormir nos seus braços que somos incapazes de pensar direito.
A não ser o facto de termos a nossa sexualidade há muito resolvida, referirmo-nos assim a “ele”, sem explicação prévia, obriga-nos, por força de algum equívoco ou pensamento perverso, a ser claros. Por isso, aqui se afirma peremptoriamente que este, de quem lhes falo, é o meu sofá!
Um sofá é o condomínio privado onde só nós cabemos, é uma espécie de colo maternal que incondicionalmente nos acolhe, é um porta-aviões estratégico no meio de nosso oceano de cansaço. Um sofá é tudo, por isso não existe sala que não o tenha, omnipresente, virado à tv, ao lado do janelão, bem próximo da lareira, do sistema surround e da mesa baixa, que fica mesmo a jeito para pousarmos o copo do uísque (e os pés também).
Não damos, aos sofás, a importância que nos merecem. Muitos deles, fazem indelevelmente parte da família e deviam ser fotografados e integrados no álbum de fotos do bebé, porque, (como os pais sabem…não é), fora no aconchego das suas molas que tudo aconteceu.
Do sofá, conduzimos a nossa equipa sempre à vitória e condenamos aquela espécie de treinador que lá puseram que, teimosamente joga no 4-3-3 e substitui quase sempre o ponta-de-lança por um defesa (assim não vamos lá…).
É de glúteos sentados nele (ups!!) que as “mádamas” vêem a telenovela das nove, torcendo pela coitadinha da Mariana, que caiu do cavalo e pelo sucesso do namoro do “galã da estação” com a “boa” da protagonista, cujo guião os envolve, vezes sem conta, em húmidos “beijos técnicos”.
Enfim, o sofá retempera-nos, pese embora o facto de uns maluquinhos pela ginástica nos tentarem vender a ideia de que, em vez de descansar o esqueleto no dito deveríamos estar a correr, patéticos, sobre uma passadeira estúpida, ou a pular e a descer freneticamente de um banco ao som do funky, em ambiente com ar condicionado… claro.
Por isso não o troco pelo “novinho em folha”, cheio de estética e design, igualzinho aos das revistas, que tenho sob a fotografia do meu avô Silvestre na sala grande. Sou, por exclusão de partes, levado a pensar, que quem o construiu é contra o descanso. Só pode.
E agora “desculpem qualquer coisinha”, vou-me retirar. Sem precisar de pijama, que é peça vitoriana e fora de moda, deito-me assim mesmo sobre ele, afago-lhe os “braços”, ajeito as espáduas e os glúteos contra a sua pele macia e em completo abandono, deixo-me enlevar na espuma densa do seu estofo de musculado cabedal (verde) e espero que, depois do sono retemperador, uma fada-madrinha me acorde, suavemente, roçando no meu rosto as sedas esvoaçantes do seu vestido.
Mas, como isso é pouco provável, por só acontecer nos “livros de cordel”, o mais certo é ser uma mosca “regateira”, chamada pelo ronco surdo do meu ressono a pousar-me insistentemente na ponta do nariz… ai se te apanho!
segunda-feira, 9 de agosto de 2010
CÃES COM PULGAS
Embora o meu vizinho assim lhe tenha posto, Matateu não é nome que se dê a um cão.
Em miúdos, todos desejamos ter um cão. Nada de gatos, que isso é felino fingido, que ronrona por entre as nossas pernas de cauda no ar, mostrando as “bolas”. Animal de “estimação” para ter como companhia, é um cão, macho de preferência e que ladre aos estranhos e sempre que batem no portão. Quanto a isso estamos falados.
Se Matateu, velha glória do futebol Belenenses, porque não dizer de “todos os tempos”, não era nome que (honestamente) se desse a um rafeiro, também “Errol Flynn” , directa homenagem ao galã de Hollywood, conhecido pelo seu papel de “Robin dos Bosques”, seria de ponderar até porque, o homem que arrasava corações, escondido naquele “bigodinho fino” de sedutor da época, teria sido bissexual, o que a ser verdade colocava em causa a sexualidade do bicho.
Não era difícil encontrar, entre estes fiéis e simpáticos animais, alguns que pela agilidade e perspicácia do olhar, nos haveriam sempre de surpreender. Pulavam cercas, seguravam bolas, levavam nos dentes as chaves de casa ou o saco do pão, sempre com compenetrada postura. Defendiam-nos dos outros cães e até daquele imbecil “burro da escola”que nos batia cobardemente, usando para nos intimidar o corpanzil gordurento criado à base de batata cozida.
No tempo em que os cães eram “mestiços”, de “cruzas” várias, que escolhiam (e fecundavam) as parceiras em plena rua, por muitas haver ao “galdério”, pouco pedigree havia. Não existia essa coisa do apartheid canino, da raça, da “marca”. Contudo, dessa mestiçagem, dessa roleta russa de genes, apareciam ninhadas de criaturas lindas.
Em tempos, tantos havia ao abandono pelas ruas, que a Câmara pelo perigo que ofereciam, tinha redes para os apanhar. Embora muitos tivessem “dono”, poucos tinham coleira e eram livres de deambular por todo o sítio. Os mais afoitos afastavam-se tanto que se “perdiam”, outros arriscavam zonas perigosas de trânsito traiçoeiro
“Sol” era o nome de um cão de caça, arguto e habilidoso entre as silvas, “Lira” o de uma cadela “maricas”, frágil e protegida, “Daktary” o cão que herdara o nome da série de televisão que tinha um zoo como cenário, tal como “Skip” em que o protagonista era um saltitante canguru. Mas havia o “Farrusco” e o “Pirussas” de pelagem curta cor de cinza, o “Pantufa” grande e desconcertante no seu corpo juvenil de labrador, o “Putchy”, de raça estranha, que embora liliputiano, parecia maior porque o pêlo farto que lhe deixaram crescer no lombo o fazia duplicar de tamanho, da “Pandora”, a boxer de olhos grandes e perscrutantes, musculada, elegante e silenciosa que se babava por tudo e por nada, para não falar do “Vai-te a ele” que “arreganhava os dentes” e uivava sempre que o atazanavam.
Hoje todos sabemos muito de raças e conseguimos visualizar o perfil do bicho. Se nos falam de um pastor alemão, lembramo-nos logo do “Max” (réplica fanhosa do “Rex”), aos “cheios de pintas”, chamamos dálmatas, porque nos recordam o filme e a maléfica Cruela, ao cachorro do “scotex”, irrompendo pelo corredor, envolto em papel higiénico, chamamos sem vacilar, labrador. E conhecemos também os basset, semelhantes a salsichas rastejantes, de orelhas a "arrojar" p'lo chão e olhos mortiços, inconfundíveis pela sua indolência, e por ai adiante, sendo que, a máxima popular, que “cão que ladra não morde”, deve ser analisada caso a caso e avaliada em função da compleição do canino e da distância dos afiados incisivos às nossas estimadas calças, até lá, e para nossa segurança, devemos manter as canelas à defesa.
domingo, 8 de agosto de 2010
CASAR COM QUEM AMAR
O casamento, antigamente, era um assunto sério. Hoje também se crê que seja.
Por via das “modernices”, que obrigam as políticas das nações a ajustar-se à “nova realidade social”, esta questão apresenta-se-nos, agora, um tanto ou quanto confusa.
Digamos que casar, já não é (só) aquele acto simbólico entre géneros diferentes, em que ele veste de escuro com gravata estampada a dar com o lenço e ela de vestido branco de “cauda”, com indeléveis ramagens “champagne”, belíssima e perfumada, de boquet de flores naturais, iguais às que lhe decoram a tiara que lhe prende o véu. Por debaixo do vestido justo, que lhe denuncia as formas, veste um conjunto de duas reduzidas peças – inversamente proporcionais ao preço - todo em “vermelho cerise”, com que há-de incendiar o nubente. (força rapaz…)
Hoje, não nos devemos surpreender se virmos um “casamento” diferente, daqueles onde aparecerem duas noivas perante o oficiante, ou onde não se vê noiva a acompanhar o noivo. Desculpem se estamos a trocar os pares, pois como pode muito bem acontecer, a partir de agora, tanto pode aparecer ele com ela, ele com ele ou ela com a outra, mas, a não ser que façam novo acordo ortográfico, o conceito de noivo e de noiva está perfeitamente enraizado na nossa cultura e vai levar mais tempo a adaptar do que a transição do escudo pró euro.
Mas como as sociedades tendem a adaptar-se às novas realidades… e a felicidade está no ar… como dizia o Solnado, “façam o favor de ser felizes”, cada um à sua maneira, bem entendido.
Mas, visto que não são questões de género o que aqui nos trás, mas sim de “verdadeiros casamentos”, daqueles que serviam de pretexto para juntar as famílias de ambos os lados e amigos próximos, à volta da mesa, partilhando da felicidades dos noivos e os prazeres da gula, diríamos que, noutros tempos, os casamentos eram um festim que durava 3 dias, sendo que um deles era, efectivamente, dedicado à cerimónia que, para os “lambões”, erao que menos interessava.
Tudo começava pelo convite. E não estamos a falar de papel impresso a ouro com os clássicos anéis entrelaçados sob o monograma em cursivo francês, falamos de convites na forma de pires de arroz-doce, decorados à mão com canela em pó, pelas mães e tias mais caprichosas. Do clássico desenho de linhas paralelas, formando losangos, aos círculos, marcados com o fundo de um copo, arriscavam ainda desenhar flores simples com uma ou outra pétala. Aceitar o arroz-doce, em prato de faiança ou no futurista “pirex” era comprometer-se, passados alguns meses, a partilhar a felicidade do casal (que, ao que dizem as más-línguas, já tirou as medidas a uns lençóis).
Para memória futura, do feliz enlace, haverá de constar a “fotografia do conjunto”. Noivos ao centro, pais e padrinhos imediatamente a seguir, avós também por perto, bisavós (se os houver), e demais convivas, assim dispostos na escadaria, com os putos a atazanar os pais que se esforçam para manter a compostura e o vinco dos fatos. Pior que os “cachopos” a estragar a biqueira dos sapatos (novos) na performance das suas intermináveis “birras”, só mesmo o “chato” do fotógrafo que teima em encenar aquilo a que ele próprio chama de reportagem, obrigando todos, ao seu sinal… a sorrirem.
E ala, que se faz tarde, porque o senhor padre, como sempre, se “esticou” no discurso e nos conselhos aos pombinhos e nós ali, aguentando estoicamente, com sede e fome, desejosos de ouvir o “ide em paz”. É altura de seguir para o local da boda, desapertar os laços e deixar os corpos, pouco dados a tamanho atavio, voltarem, como qualquer rio, ao seu leito natural.
A festa durará até que haja comida e a noiva comparecerá (mal dormida), como manda a regra, vestida com o “fato do segundo dia”, sorridente e feliz ainda com um “brilhozinho nos olhos”, ao que alguns “malandrecos” atribuem à noite bem passada.
O músico contratado para abrilhantar a festa, comia com a malta como se fosse da família e interrompia as “modas” sempre que os convivas davam “vivas” aos noivos, que por se sentirem agora, mais à vontade, não roborizavam com tanta frequência.
Quase tudo era confeccionado no local alugado para o efeito. Acordava-se com a cozinheira, alugava-se a palamenta, recolhiam-se estrados e bancos “corridos”, amanhavam-se as aves e outros animais de capoeira e confeccionavam-se os doces.
Por fim, cansados de tanta festa, lavava-se e arrumava-se tudo, entregava-se a chave do “salão”, pagava-se a quem se devia, devolvia-se as grades da “laranjada” e o que se pedira emprestado e esperava-se, que os noivos, que tinham a vida pela frente, fossem felizes para sempre…
Por via das “modernices”, que obrigam as políticas das nações a ajustar-se à “nova realidade social”, esta questão apresenta-se-nos, agora, um tanto ou quanto confusa.
Digamos que casar, já não é (só) aquele acto simbólico entre géneros diferentes, em que ele veste de escuro com gravata estampada a dar com o lenço e ela de vestido branco de “cauda”, com indeléveis ramagens “champagne”, belíssima e perfumada, de boquet de flores naturais, iguais às que lhe decoram a tiara que lhe prende o véu. Por debaixo do vestido justo, que lhe denuncia as formas, veste um conjunto de duas reduzidas peças – inversamente proporcionais ao preço - todo em “vermelho cerise”, com que há-de incendiar o nubente. (força rapaz…)
Hoje, não nos devemos surpreender se virmos um “casamento” diferente, daqueles onde aparecerem duas noivas perante o oficiante, ou onde não se vê noiva a acompanhar o noivo. Desculpem se estamos a trocar os pares, pois como pode muito bem acontecer, a partir de agora, tanto pode aparecer ele com ela, ele com ele ou ela com a outra, mas, a não ser que façam novo acordo ortográfico, o conceito de noivo e de noiva está perfeitamente enraizado na nossa cultura e vai levar mais tempo a adaptar do que a transição do escudo pró euro.
Mas como as sociedades tendem a adaptar-se às novas realidades… e a felicidade está no ar… como dizia o Solnado, “façam o favor de ser felizes”, cada um à sua maneira, bem entendido.
Mas, visto que não são questões de género o que aqui nos trás, mas sim de “verdadeiros casamentos”, daqueles que serviam de pretexto para juntar as famílias de ambos os lados e amigos próximos, à volta da mesa, partilhando da felicidades dos noivos e os prazeres da gula, diríamos que, noutros tempos, os casamentos eram um festim que durava 3 dias, sendo que um deles era, efectivamente, dedicado à cerimónia que, para os “lambões”, erao que menos interessava.
Tudo começava pelo convite. E não estamos a falar de papel impresso a ouro com os clássicos anéis entrelaçados sob o monograma em cursivo francês, falamos de convites na forma de pires de arroz-doce, decorados à mão com canela em pó, pelas mães e tias mais caprichosas. Do clássico desenho de linhas paralelas, formando losangos, aos círculos, marcados com o fundo de um copo, arriscavam ainda desenhar flores simples com uma ou outra pétala. Aceitar o arroz-doce, em prato de faiança ou no futurista “pirex” era comprometer-se, passados alguns meses, a partilhar a felicidade do casal (que, ao que dizem as más-línguas, já tirou as medidas a uns lençóis).
Para memória futura, do feliz enlace, haverá de constar a “fotografia do conjunto”. Noivos ao centro, pais e padrinhos imediatamente a seguir, avós também por perto, bisavós (se os houver), e demais convivas, assim dispostos na escadaria, com os putos a atazanar os pais que se esforçam para manter a compostura e o vinco dos fatos. Pior que os “cachopos” a estragar a biqueira dos sapatos (novos) na performance das suas intermináveis “birras”, só mesmo o “chato” do fotógrafo que teima em encenar aquilo a que ele próprio chama de reportagem, obrigando todos, ao seu sinal… a sorrirem.
E ala, que se faz tarde, porque o senhor padre, como sempre, se “esticou” no discurso e nos conselhos aos pombinhos e nós ali, aguentando estoicamente, com sede e fome, desejosos de ouvir o “ide em paz”. É altura de seguir para o local da boda, desapertar os laços e deixar os corpos, pouco dados a tamanho atavio, voltarem, como qualquer rio, ao seu leito natural.
A festa durará até que haja comida e a noiva comparecerá (mal dormida), como manda a regra, vestida com o “fato do segundo dia”, sorridente e feliz ainda com um “brilhozinho nos olhos”, ao que alguns “malandrecos” atribuem à noite bem passada.
O músico contratado para abrilhantar a festa, comia com a malta como se fosse da família e interrompia as “modas” sempre que os convivas davam “vivas” aos noivos, que por se sentirem agora, mais à vontade, não roborizavam com tanta frequência.
Quase tudo era confeccionado no local alugado para o efeito. Acordava-se com a cozinheira, alugava-se a palamenta, recolhiam-se estrados e bancos “corridos”, amanhavam-se as aves e outros animais de capoeira e confeccionavam-se os doces.
Por fim, cansados de tanta festa, lavava-se e arrumava-se tudo, entregava-se a chave do “salão”, pagava-se a quem se devia, devolvia-se as grades da “laranjada” e o que se pedira emprestado e esperava-se, que os noivos, que tinham a vida pela frente, fossem felizes para sempre…
sexta-feira, 30 de julho de 2010
XIÇA, QUE ISSO DÓI
Se havia coisa de que a maioria das crianças não gostava era de injecções, melhor dizendo, de agulhas. Vacinas então nem se fala.
Em tempos, como mandava a boa da educação sanitária e preventiva, nos idos anos 60, todas as crianças tinham de ser vacinadas, para dessa forma, evitar o tétano, a difteria, o sarampo, a varicela ou a tuberculose.
Estes inimigos invisíveis que era preciso combater, que estavam nos pregos ferrugentos ou na tosse dos doentes, eram mal compreendidos pelas crianças que, na ingenuidade dos seus verdes anos, acreditavam que - mal que não se vê, não existe.
No tempo em que Almeirim só tinha uma escola primária, havia uma espécie de posto de saúde, a que deram - e vá-se lá saber porque razão - o estranho nome de Dispensário. Era lá, que há muitos anos, se ministravam as vacinas.
Vinham as crianças, tristes “como cão por corda”, a pé e em fila, das antigas “Escolas Velhas” até ao dito Dispensário para se submeterem à terrível tortura da “vacina do aparo”, ou de outra qualquer com agulhas. Alguns, pelo caminho, armados em “fortes” tentavam esconder o nervosismo fazendo “macacadas” ao que o professor, quase sempre sem demora, tratava de reprimir a toque de “carolo” ou de estalo no “cachaço”.
Normalmente não havia aviso para o ritual, mas, se partíamos todos, era bastante provável que alguém da turma não chegasse ao destino. Valério, de agulhas não tinha medo, tinha PAVOR. Pelo percurso haveria de arranjar, quase sempre, uma solução para não ser picado e com essa sua façanha, livrar-nos de ver a triste figura que sempre fazia, gritando desalmadamente em frente às seringas, mesmo que o clássico cartaz, aquele nosso conhecido, que perdurou por muito tempo nas enfermarias, representando uma enfermeira de dedo indicador sobre os lábios exigindo “SILÊNCIO”, estivesse “espetado”, ali mesmo, à sua frente.
Nada o fazia calar. Começava a berrar antes mesmo de ver as latas de inox contendo as apetrechos e só terminava a berraria quando lhe soltavam o braço. Mas, no meio desta acção profilática, que excelentes resultados parece ter dado – a ver pela malta que por aqui se conserva – havia uma pequeno equipamento, talvez de inox, que nos deixava a pensar. Tratava-se de uma bacia, elevada à altura da cintura por uma coluna cilíndrica do mesmo material, rematada por uma base arredondada de onde saia um pedal que accionava a tampa. Ali, à vista de todos, “certos alguns”, calcavam no pedal, quase sempre com alguma parcimónia e num ”arranque, falando em sintaxe de halterofilia, puxavam os resquícios do suco gástrico (ou sei lá o que fosse) às paredes do esófago ou às fossas nasais e lançavam-no, sem complexos, naquela coisa inominável, deixando muitas vezes uma espécie de teia de aranha fina de muco entre “aquilo” e a boca. Aquela coisa diabólica era um “escarrador”.
Estas verdadeiras peças de museu já não existem, felizmente, mas infelizmente ainda perduram algumas “aventesmas”, que carregam no ADN informação pré-histórica e por essa razão, ainda cospem para o chão.
Depois de picados, éramos reunidos cá fora, junto aos buxos que ladeavam a entrada, mas nesta altura, já a bata branca estava abotoada e o coração tinha voltado ao seu ritmo normal. A caderneta das vacinas levava um carimbo, tornando-se numa espécie de passaporte que nos garantia a imunidade “bactero-viral”, e uma data escrita à mão, que, para a maioria de nós, queria dizer que só lá voltávamos se nos obrigassem.
Do Valério perdeu-se o rasto. Por essa razão não sabemos se já enfrenta as injecções com valentia ou se ainda foge do estucador ou do padeiro porque se vestem de branco. O que se sabe é que o Dispensário foi demolido e com ele desapareceram os “escarradores”.
quinta-feira, 29 de julho de 2010
TATUADO NO BRAÇO
Arrancados à pacatez do sítio onde nasceram, cresceram ou se fizeram homens e onde, por incondicional amor à terra, desejavam morrer, muitos foram os mobilizados para o “ultramar português”, com a obrigação de travar os “terroristas”.
Os relatos trazidos de lá não abonavam à tranquilidade e ao sono descansado, especialmente para os soldados que incorporavam os grupos de acção directa que combatia o “inimigo” na mata.
Das atrocidades da guerra, da solidão dos postos de vigia, dos “aerogramas” que não foram lidos, dos adultérios, dos estropiados, dos “cacimbados” e dos loucos, dos que viveram bem à custa dela, dos mortos e dos heróis, não vamos aqui falar.
Por isso, podemos falar da amizade e do companheirismo, dos laços fortes entre os homens que partilharam entre si a mesma condição e a mesma incerteza, jogando sem vontade, uma espécie de “roleta russa” com a morte.
Por assim dizer, “praça” que se prezasse trazia, marcado na pele, a tinta, e para sempre, uma recordação de sua passagem por África. Fazia parte do espírito gregário e de corpo, sentido nas “fileiras”, o qual, misturado com a saudade, davam para aquelas coisas.
Bastavam 3 agulhas - daquelas de coser roupa - apertadas em paus de fósforo, uma “carica” de cerveja “cuca”, que servirá de recipiente, tinta-da-china preta e tinhamos tudo o que era preciso. Não se conhecem grandes cuidados com desinfecções do material e facilmente acreditamos que uma esfregadela com “uísque de Sacavém” sanava qualquer enfermidade da epiderme. À destreza e sobriedade do “tatuador”, havia de corresponder a qualidade da obra.
Os Pára-quedistas tatuavam o brevet, os Fuzileiros da infantaria de Marinha, o “sabre envolta em 2 palmas”, os Comandos a sua insígnia envolta no grito “Mama Sume”, os outros, que tinham igual direito ao sentimento de pertença, as armas do seu batalhão e por ai a fora até ao “Angola 1961-1963”, ao coração estilizado envolvendo o “Amo-te Rosa, Moçambique -1968”, o vulgar “Guiné 25.03.1973”, o clássico “Amor de Mãe”, ou o clássico dos clássicos,"Sangue Suor e Lágrimas".
Muito depois de terminada a guerra colonial, se continuou a perpetuar sentimentos de pertença nas forças armadas, mas hoje dificilmente alguém deixa tatuar no braço esquerdo uma “gaja nua” ou um “Amo-te Querida”.
É porque, o que hoje é amor, amanhã pode ser rancor.
LOJAS DO BAIRRO
As mercearias estavam para as mulheres como as tabernas para os homens.
“Meia quarta” de café, 3 velas de sebo uma caixa de fósforos (das pequenas) e um vidro pró candeeiro. As mercearias de bairro, vulgarmente conhecidas por lojas, eram o ”entreposto comercial” mais próximo da nossa casa e mais distante, em aspecto e quantidade de géneros, do nosso conhecido super subalterno do hiper(mercado).
Floresciam nos gavetos mais importantes, marcando uma posição de assumida estratégia comercial. Muitas tinham acopladas tabernas, esses pequenos antros de perdição alcoólica, onde mulher respeitada não entrava. Na grande maioria dos casos as lojas eram suficientes, o dinheiro é que não, por isso era sempre a “assentar”.
O “avio” era feito ao sábado e "devia" de chegar para toda a semana. Já o “conduto” era comprado no mercado, onde se perfilavam os talhos, que, no tempo em que não havia moscas (nem ASAE), dependuravam à porta, as “peças” espetadas em grandes “anzóis” de inox. Excepção feita aos enchidos e ao frango, que se podiam comprar em algumas lojas, todas as outras carnes se compravam nos talhantes, ou na forma de animais vivos, porque também havia quem nesse tempo não tivesse aves de criação.
Compravam-se amendoins à “mão-cheia” e “chupas” de um só sabor, “bolacha baunilha a peso”, “álcool azul” para o fogareiro de “latão amarelo” e os ”espevitadores”, singela ferramenta de socorro que qualquer cozinha deveria ter.
Falemos em particular do amendoim torrado, que Baco não desprezaria por companhia por ser “marisco de taberna”, como o tremoço. Na competição entre amendoins, lá aparecia o “israelita”, maior que os da concorrência e por isso também, menos unidades por mão-cheia. Aceitava-se.
Nas lojas, onde o bacalhau se cortava em postas pequenas, para “dar para mais”, vendia-se também azeite de talhas de lata, sugado por bombas e petróleo “normal” para acender o carvão. Podia-se comprar envelopes à unidade e selos de igual maneira, colorau em “papeluços” cor de laranja e açúcar loiro em “cartuchos” de papel creme. Palmilhas para os sapatos, sabão azul a peso, embrulhado no jornal “O Século”, ganchos para o cabelo das meninas e “redes” para o carrapito das mulheres, e até pentes para os homens mais “opiniosos”, que o guardavam ciosamente no bolso das calças, ou entre a carteira atulhada de papéis, que usavam sem pejo, sempre que o vento descompunha as melenas.
Mas voltando às lojas, porque é delas que aqui se fala, estas eram uma espécie de “banco alimentar do fiado” onde se podia ficar a dever ao merceeiro, que é igual a dizer, “assente ai” no "livro dos cães”, que pago quando receber.
E assim se ia vivendo, nesta espécie de conivência baseado na “seriedade da pessoa”, isto no tempo em que ser honrado e sério era tido como um valor social em abundância. Mas, convém dizer que, sendo o povo analfabeto e pouco vivaz e o homem da loja pouco escrupuloso, sempre havia contas devedoras que, dentro do livro, se iam fecundando umas às outras aumentando a dívida e favorecendo o merceeiro, claro está.
Vendiam-se também esferográficas, que era coisa que ninguém oferecia - bic, escrita fina e bic normal – . Certo dia, respondendo a uma reclamação, de que a “caneta” não escrevia, abeirou-se ao balcão o velho merceeiro que aceitou sem demora trocar a dita por nova. Afastou-se no interior da loja, esfregou-a entre as mãos, para aquecer a tinta, riscou duas ou três vezes no papel da saca da “farinha para os pintos” e voltou. - Aqui está, novinha em folha. O cachopo agradeceu e saiu a correr.
Era assim que se enganavam os tolos.
quarta-feira, 28 de julho de 2010
BARBA E CABELO
Noutros tempos, na barbearia, podia-se cortar cabelos, desfazer barbas e arrancar dentes. Hoje, só se cortam cabelos e raramente se “fazem” barbas. Lêem-se umas novidades nas revistas “cor-de-rosa” amontoadas a um canto, quase todos os jornais desportivos, porque a clientela é eclética e clubisticamente sensível e, com sorte, recolhemos de viva voz, as cusquices mais frescas e mais improváveis que não se lêem nos jornais, trazidas por párias de “baixa pela Caixa” e reformados jovens (que é o contrário de jovens reformados).
Pela porta metálica de cortinas gastas, entram e saem estes pombos correios da coscuvilhice.
Zé, envolvido na bata branca que fazia questão de vestir, aberta à frente junto ao pescoço, afiava na tira de couro a navalha de lâmina reluzente com que havia de fazer os caldinhos. O seu desempenho dependia do “fio” que soubesse tirar do atrito com o “cabedal”. A barba rija dos “homens do campo”, mantida por fazer ao longo da semana, era ceifada, à primeira, deixando a cara lisa como rabinho de menino.
Duas palmadas no estofo verde, convidavam o Toino a sentar-se naquela cadeira maluca “marca Pessoa” que girava sempre que o mestre queria. Mestre Zé, que já tinha enfiado o apoio para a cabeça nos orifícios metálicos, inclinou o conjunto abrigando Toino a esticar o pescoço para trás e ajeitar os costados. Naquela posição em que oferecia o pescoço nu à navalha, Toino sentia-se desconfortável e para descontrair, respirou fundo e fincou as mãos no apoio dos braços. De costas para o “cliente” e preparando o caldo na pequena bacia de inox onde o pincel curto das “ensaboadelas” misturava sabão e água, Toino via-o reflectido no espelho enquanto este tentava fazer levedar a espuma branca do preparado. Pega-lhe no nariz com a ponta dos dedos, deixando-o a salvo da espuma que vai espalhando em movimentos circulares do pincel. De ambos os lados da cara, no pescoço, por debaixo do nariz, junto às patilhas de onde tira o excesso com a ponta dos dedos, mestre Zé estava pronto para passar ao ataque. A navalha deslizava em movimentos curtos e firmes, deixando a face sem espuma e sem pêlo. Com a ponta da toalha, limpou junto às orelhas o excesso de espuma, agora seca.
Trocou de ferramentas e aprontava-se agora para aliviar o Toino da “trunfa” que lhe crescera na cabeça, com se fosse “grama”. Colocou o pente no único bolso da bata e deu três ou quatro tesouradas no ar, como que a testar o funcionamento do utensílio. O som metálico das lâminas a cruzarem-se vão repetir-se, pelo menos, nos 15 minutos seguintes. A cada tesourada no cabelo correspondia, no mínimo, duas tesouradas no ar, um tique que o mestre fazia sem dar conta.
O cabelo que se desprendia da tesoura e caía sobre o colo do Toino parecia o pêlo da velha mula pigarça que tinha em casa. Acerta a patilha com a máquina “zero ”, afina, junto à orelha e na base da nuca com a navalha com que lhe desfez a barba e, depois de o inundar de perfume rasca, termina, sacudindo o “babete” no ar, fazendo-o estalar como um chicote.
Pagou e saiu, mas não levou o cabelo cortado.
Pela porta metálica de cortinas gastas, entram e saem estes pombos correios da coscuvilhice.
Zé, envolvido na bata branca que fazia questão de vestir, aberta à frente junto ao pescoço, afiava na tira de couro a navalha de lâmina reluzente com que havia de fazer os caldinhos. O seu desempenho dependia do “fio” que soubesse tirar do atrito com o “cabedal”. A barba rija dos “homens do campo”, mantida por fazer ao longo da semana, era ceifada, à primeira, deixando a cara lisa como rabinho de menino.
Duas palmadas no estofo verde, convidavam o Toino a sentar-se naquela cadeira maluca “marca Pessoa” que girava sempre que o mestre queria. Mestre Zé, que já tinha enfiado o apoio para a cabeça nos orifícios metálicos, inclinou o conjunto abrigando Toino a esticar o pescoço para trás e ajeitar os costados. Naquela posição em que oferecia o pescoço nu à navalha, Toino sentia-se desconfortável e para descontrair, respirou fundo e fincou as mãos no apoio dos braços. De costas para o “cliente” e preparando o caldo na pequena bacia de inox onde o pincel curto das “ensaboadelas” misturava sabão e água, Toino via-o reflectido no espelho enquanto este tentava fazer levedar a espuma branca do preparado. Pega-lhe no nariz com a ponta dos dedos, deixando-o a salvo da espuma que vai espalhando em movimentos circulares do pincel. De ambos os lados da cara, no pescoço, por debaixo do nariz, junto às patilhas de onde tira o excesso com a ponta dos dedos, mestre Zé estava pronto para passar ao ataque. A navalha deslizava em movimentos curtos e firmes, deixando a face sem espuma e sem pêlo. Com a ponta da toalha, limpou junto às orelhas o excesso de espuma, agora seca.
Trocou de ferramentas e aprontava-se agora para aliviar o Toino da “trunfa” que lhe crescera na cabeça, com se fosse “grama”. Colocou o pente no único bolso da bata e deu três ou quatro tesouradas no ar, como que a testar o funcionamento do utensílio. O som metálico das lâminas a cruzarem-se vão repetir-se, pelo menos, nos 15 minutos seguintes. A cada tesourada no cabelo correspondia, no mínimo, duas tesouradas no ar, um tique que o mestre fazia sem dar conta.
O cabelo que se desprendia da tesoura e caía sobre o colo do Toino parecia o pêlo da velha mula pigarça que tinha em casa. Acerta a patilha com a máquina “zero ”, afina, junto à orelha e na base da nuca com a navalha com que lhe desfez a barba e, depois de o inundar de perfume rasca, termina, sacudindo o “babete” no ar, fazendo-o estalar como um chicote.
Pagou e saiu, mas não levou o cabelo cortado.
domingo, 18 de julho de 2010
COISAS DO CATANO
Como sabemos, o futebol foi inventado pelos britânicos e foi através destes e dos vinhateiros do Douro, que chegou a Portugal, tornando-se no nosso desporto nacional. Foi de tal maneira, que explodiu por tudo quanto era sítio e não havia, a partir dai, santa terrinha que não tivesse uma equipa, por muito “fajuta” que fosse.
Só os bons, os artistas ou predestinados tinham lugar cativo nas equipas, os outros, por muito amor à camisola que tivessem limitavam-se, do banco, a ver jogar os “convocados”.
Certo dia os manos Alexandre, cuja compleição física abonava pouco para o futebol, mas movidos pelo desejo de fazer o gosto ao pé, juntavam a malta disponível no pelado das traseiras. Atapetado a pó fino, este “estádio da caganita”, não era coisa nenhuma. Torto e sem balizas, obrigava a trocar as equipas para equilibrar o resultado, uma vez que a bola, por força da gravidade, teimava em pender para o lado que mais lhe convinha. Mas à parte este pequeno pormenor da inclinação do campo, as equipas lá iam “evoluindo no relvado”, fazendo saltar uma nuvem de poeira cada vez que pontapeavam o esférico num passe mais em jeito.
Manel fica à baliza, que mais não era que dois montículos encimados por uma pedra, Rique fica à defesa, para varrer sem piedade. Depois de um embate titânico entre eles e os “lingrinhas” da rua de trás, regressaram a casa sedentos e irreconhecíveis, um por se mandar para o chão para evitar os golos e o outro pelos “cortes em carrinho” que deitavam por terra, os avançados adversários, com ou sem bola.
Manel, numa dessas defesas que levavam o selo de golo, reparou num pequeno pedaço de metal que emergia da terra remexida, pegou nele, limpou-o com a ponta dos dedos, esfregando-o com saliva e reparou tratar-se de metade de uma moeda. Guardou-a consigo, com o intuito de a mostrar ao irmão a caminho de casa. Assim fez.
– Olha o que encontrei junto à “baliza”- mostrando ao “mano velho” o semicírculo metálico que agora, sem sombra para dúvidas, lhe parecia ser metade de uma moeda de cinco escudos. Tem graça, disse o Rique - Encontrei também uma coisa igual a essa – afirmou ao mesmo tempo que levava a mão direita ao bolso das calças.
Por incrível que pareça, Manel e Rique tinham encontrado as duas partes de uma mesma moeda de cinco escudos, cortada ao meio sabe-se lá por quê. Bom seria ser inteira, que “cinco mil réis” sempre era dinheiro. Que fazer agora? - Vamos aos Quinas soldá-la, diz o mais espevitado dos dois.
E assim fizeram, “pegaram em sí” e foram à oficina das alfaias, existente na rua 5 de Outubro, pedir para ligar a moeda na expectativa de ficarem com a dita inteira.
Feita a tarefa, vamos a contas.
Espanto dos manos - soldar a moeda de “5 paus” tinha custado “7 e quinhentos”.
Outra vez, já adulto, um dos manos, imbuído na sofreguidão de construir sem demoras a casa daquele pobre coitado que tinha os tostões à conta para, “quatro paredes e telhado de uma água”, enlevado pela brisa da manhã que o predispunha para o trabalho, foi levantando sem demoras as 4 paredes da pobre habitação. Sempre à volta, somando a cada volta mais uma fiada de tijolo, que se apresentava agora bem acima da sua cabeça, lá seguia pedindo ao servente celeridades nas massas e nos tijolos. A coisa corria bem até que, num movimento mais brusco, a colher do trolha tropeça no fio esticado para o alinhamento e é catapultada além paredes, caindo para o lado de fora daquele prisma sem telhado. Havia que recuperá-la mas, quando se aprontou para o fazer, reparou com espanto ter-se esquecido da porta.
O “estádio da caganita” já não existe, tal como os manos Alexandre. O campo continua hoje, inclinado, empoeirado e cheio de entulhos anónimos, depositados a coberto da noite. Quanto aos manos, particularmente castiços e originais na sua forma de estar, há muito que se transformaram em pó.
Não será certo que o relatado tenha acontecido, pelo menos desta maneira, contudo, o que aqui se vê é a importância do conto como matéria de estudo das gentes simples dos quais não “reza a história” que, à sua maneira, brincaram com a vida para esta não os levar muito a sério.
MISS RIBATEJO 2010
O casting foi no dia 17 deste mês no Cine-Teatro de Almeirim.
As beldades apareceram a bom ritmo, para mostrarem o seus dotes fisicos (e chega), e pelo menos o espaço ficou com alguma gente. Até "doutores" apareceram, da mula russa. Realmente as redes sociais são propicias a este tipo de enganos, mas fica bem chamar-se doutor a quem nem o secundário tem completo (digo eu).
Faz-me lembrar o Brasil, não, não pela beleza das mulheres, mas sim pelo que lá se passa.
Doutores ou Coroneis...
Realmente em terra de cegos quem tem olho é rei. Mas os cegos não são cegos, ou não os deixam ver mais ou melhor ou convém passar por cegueta.
Eu não gostava de ter um país de doutores e de coroneis, não ...
Mas com esta sociedade, e com os problemas que enfrentamos nesta vida, já estamos quase licenciados em "SOFRER", mas isso não nos dá o grau académico, mas sim as coisas ruins que temos que passar.
Como diz a tradição popular "Cada porco tem o seu S. Martinho", mas enquanto essa data não aparece temos que "gramar" com este tipo de gente. Oportunistas, etc., etc.
Mas o que interessa realmente é a beleza das Ribatejanas, aquela beleza que nos anima e faz ganhar alento para enfrentar os maus dias que ai vêm...
sábado, 17 de julho de 2010
A BANHOS NA NAZARÉ
A Nazaré não é a esposa do merceeiro, é a praia mais castiça de Portugal e arredores.
No tempo em que parelhas de bois barrosões arrastavam lentamente os barcos a remos pela praia, encaminhando-os para a melhor zona para entrar no mar, ou ajudando a recuperar as redes, não havia “porto de abrigo”. A bendita construção veio trazer à Vila a segurança dos homens e das embarcações e com ela as mulheres das sete saias, podiam agora aliviar-se de preocupações.
O abrigo do porto obrigou a frota a “estacionar” em segurança, devolvendo aos veraneantes uma boa fatia de areia. Pelo chão ficaram os anzóis XL, que todos temíamos pisar e um conjunto de barcos que morreram na praia e que serviam de guarda-sol aos que se esqueceram do dito. O chão de sílica, que recebia as redes de pesca efervescentes de vida, estava agora desimpedido. Apenas as redes do “carapau escalado” nos reportavam a outra época e nos faziam lembrar parte do “postal ilustrado” que era, no seu todo, este pitoresco amontoado de casas de gente que vivia essencialmente do mar.
Do Sítio, observamos o mar imenso, rematado de espuma e tocado pelo vento norte. Cá em baixo, o listrado das “barracas”, perfeitamente alinhadas, coloria a zona vigiada pelos “banheiros”. Nesta altura, a televisão ainda era a preto e branco e “marés vivas” não era a série com da peituda Pamela Anderson, mas a revolta de mar que sacudia todo o que nele quisesse entrar.
Os putos, cumprindo a vontade dos médicos e dos pais, eram mergulhados nas águas salgadas do oeste contra a sua vontade. “Banheiros” experientes, sabiam como fazê-lo por entre o pavor, a respiração ofegante e as inalações de água salgada que saíam pelo nariz na forma de bolas de sabão de ranho.
Alguns adultos, pouco dados a estes ambientes anfíbios, “ficavam na barraca”, ao abrigo do Sol, comendo pevides e tremoços salgados. Outros, mais valentes, “iam às traineiras e vinham”. As “mulheres do campo” não arriscavam muito, mostrando apenas, pudicamente, os joelhos ao astro-rei e a um ou outro mirone imbecil, que sempre os haviam em quantidade nestes sítios com muita gente. Só as senhoras ousavam vestir fatos de banho, opacos e aconchegantes, verdadeiras armaduras de nylon que usavam com toucas de borracha às florzinhas, que lhes mantinham as carnes e os penteados nos devidos sítios. Amiúde, vinham à beira-mar pontapear as ondas que lhes espraiavam junto aos pés. Só as crianças quebravam as regras e “despiam-se para a ocasião”, fazendo com a areia, castelos esconsos que a subida da maré invariavelmente destruía.
A mulher de negro que ajeita o lenço na cabeça, escondendo um buço que mais parece um mustache, vende tremoços e amendoins numa banca de madeira e aluga quarto aos “cámones”… - rumesse, xambre, xambre, … quer “alugare” senhor, diz a velha nazarena sem estar certa de o conseguir, tentando adivinhar se a família é francesa ou é das Fazendas de Almeirim.
Agora é tirar o sal do corpo, vestir roupa lavada e jantar mais cedo, é preciso subir ao Sítio e comprar bilhetes para a tourada.
– 3 toiros 3 – Ganadaria Palha Blanco. A cavalo Simão da Veiga e Mestre Baptista, Forcados do Aposento da Moita e a pé, o africano Chibanga, exímio a bandarilhar na cara do toiro, vai tentar pregar os pés no chão da arena e deixar a besta, espumando da boca, roçar indelevelmente as lantejoulas do traje de “luces”, tentando com isso arrancar aplausos àquele aficionado do sector-sombra, que apregoa valentia, mas que não saltava lá para dentro, nem que lhe pagassem.
sexta-feira, 16 de julho de 2010
“PRAIA DOS TESOS”
Há falta de melhor praia, tínhamos o Tejo.
Quem não dispunha de tempo ou tinha pouco dinheiro, sempre podia passar um dia agradável, de pezinhos na água, praticamente sem “sair de casa”.
O rio grande era já ali, junto à Tapada, a aldeia que se constituiu do casario operário edificado pelo pessoal que ajudou à construção da Ponte de D. Luís I, que em tempos idos, pasme-se, apresentava portagem, ou seja, veículos, fossem eles quais fossem, pagavam para a atravessar, por isso utilizá-la para ir a Santarém (ou vice-versa), significava ser taxado com aquela espécie de coima.
Sobre a dita, muitas vezes haveria de passar o velho Lobo, a caminho da estação de comboios da Ribeira, para resgatar mercadorias que transportava na sua “galera” puxada por bestas. Tantas vezes cumpria a distância, no ritmo cadenciado e frouxo dos animais, que não precisava de se preocupar muito com a condução das "alimárias", nem em utilizar o “acelerador de chicote” para lhes dar gás aos cascos e assim chegar rápido ao destino. Dia após dia, semana sobre semana, as bestas, cansadas do mesmo percurso, acabavam por “decorar” as paragens e nesse sentido, podia o carroceiro descansar pois, o mais certo era só pararem no destino.
Naquela altura, existiam uns “moi-almas” que se divertiam a pregar partidas e, reparando que o velho Lobo, completamente “desligado”, dormia na boleia do veículo de madeira, que aportava à “pontinha”, vindo de Santarém, pensaram (e melhor fizeram), seguraram com cuidado as rédeas junto ao freio e obrigaram os animais a dar meia volta, para assim continuarem, sem sequer parar, novamente a caminho da estação.
Ainda hoje os "bedelhos", alguns já homens feitos, se riem da brincadeira, mas quem não terá achado graça nenhuma foi o Lobo que, quando acordou, se viu para lá da “casa do guarda”.
Mas voltando ao Tejo, outrora navegado por faluas, fragatas e bergantins reais e por um conjunto de outras pequenas embarcações que, a toque de vento ou à força de braço, evoluíam no bailado das águas, emprestando às suas margens, portos para certos prazeres de Verão, lá navegavam por ente arquipélagos de areia o trânsito das embarcações. Nesta época do ano, era frequente surgirem pequenas ilhas de areia que ficavam submersas quando o caudal provocado pelos Invernos chuvosos, obrigava a transbordar a água do seu imenso copo, inundando campos de cultivo e de pasto e obrigando a acautelar pessoas, bens e animais.
A sombra dos salgueiros e dos chorões, serviam de guarda-sóis e a lenha seca, deixada na “areia da praia”, servia para alimentar a fogueira para assar os "catalões", as sardinhas ou a fataça acabada de pescar.
Recordo um momento feliz, daquele miúdo sentado na areia morna da “praia”, preparando a “espingarda” feita de cana e vara de salgueiro. Pelo seu interior, haveriam de sair pequenas “balas” de madeira, empurradas pela tensão da vara “armada” em forma de arco. Presto aqui homenagem à “laranjada”, à “gasosa” e ao pão-de-ló, caprichos de mesa, que tornavam tudo aquilo mais desejável.
O rio sempre foi perigosamente enganador e os “fundões”, identificados pelos adultos pela escuridão das águas, faziam os mais temerários questionar os seus dotes de nadador quando nele se aventuravam. Muitos, perderam ali a vida, desafiando as forças nadando contra a corrente, ou mergulhando em "sítios com lenha".
Na “praia dos tesos” uma bandeira, feita com um lenço de nylon colorido, assinalava o local para que os pequenos não se perdessem. Os homens dormiam a sesta na fresquidão da sombra, enquanto as mulheres davam corda à “matraca”, enterrando os vivos e desenterrando os mortos, enquanto esfregavam com areia o fundo dos pratos de alumínio, retirando a custo o gordura da bela da sardinha que acompanhou a salada de catalão e tomate “xucha”.
O Sol queimava menos e o vento que corria no vale anunciava o fim do dia. Era hora de “embalar a trouxa e safar”. Os putos vestiam as camisolas, as mães ajeitavam as fráguas do cabelo que, com o vento, se libertaram do carrapito e os homens preparavam-se para levar a palamenta à ilharga.
Pelo chão, as poucas espinhas e os restos da salada envinagrada, abandonadas no local, eram disputadas agora por 10 batalhões de moscas que continuavam a chamar-se entre sí, as mesmas que, enlouquecidas pelo cheiro libertado da grelha nos tinham pousado, literalmente, em tudo o que era sítio, até mesmo no cocó fresco do “cão da malta”.
O banho tinha sido no Tejo, agora era só lavar os pés e deitar. Grande dia este, passado à “borda d’água”. Domingo que vêm o almoço vai ser fataça, pescada ao repuxão e assada no carvão, regada por fora com muito azeite, com pouco grau.
Mas, se ao azeite se retirava o grau para aumentar a qualidade, ao vinho pedia-se que o tivesse para o distanciar da água-pé e o tornar numa "pomada" apreciável.
Amanhã será outro dia de calor, igual aos demais, impiedoso para quem trabalha a céu aberto, mas igualmente penoso para quem o faz debaixo de telha.
Vou pôr o garrafão a refrescar no fundo do poço e Deus queira que chegue a domingo com saúde.
HARRE’MACHO!
Uma das maiores e mais trepidantes ruas de Almeirim, sempre foi a que homenageia o épico “mestre-escola de Sagres”, Infante Dom Henrique - que se lembrou, vejam só, de fazer uma escola naútica na ponta agreste onde nenhum barco poderia jamais aproar. Mas voltando à rua que de tanta trepidação, até enjoava, como o mar dos Algarves, verdadeira avenida de uma Almeirim pobre de alcatrão e rica de pó e buracos, era, pela particular razão de que fazia a ligação, em linha recta, entre o Depósito e o D. Manuel de Mello, bastante utilizada. Afinal, fora para isso que tinha sido atapetada a seixo rolado do melhor que se fabricava no mercado.
Nessa altura valorizava-se a arriscada profissão de construtores de poços. O risco era directamente proporcional à profundidade a que se faziam descer os anéis de tijolo e argamassa até às nascentes puras e frias a mais de sete metros de “fundura”. Havia-os bem mais fundos, com patamares intermédios, onde se colocavam motores a “tratol” que sugavam a custo, lá do fundo, o precioso líquido para alimentar as hortas dos quintais maiores.
Circulando a caminho do Pupo, pela dita “avenida”, sacudido pelo impulso dos amortecedores da sua velha motoreta, passou o Zé a caminho de casa, cansado de mais um dia de trabalho na “mina” da água de um quintal das Poupas.
Torcato, como sempre, brincava na rua, perdido no imaginário de quem tinha nascido com trissomia 21 e a quem eram desculpadas atitudes menos responsáveis. Parado junto à casa onde nascera brincava com uma espécie de chicote feito de uma verdasca seca de marmeleiro e uma corda mas, para rematar a ponta livre, atou-lhe uma etiqueta de madeira, daquelas que vinham a identificar as sacas das batatas holandesas.
Torcato viu o Zé passar-lhe pela frente, que distraidamente o cumprimentou, ao que este lhe respondeu arrefinfando-lhe uma bem assente vergastada nas costas. Assentou de tal maneira bem, no dorso do incauto motociclista, que o rectângulo da sua forma, ficou gravado na pele, por debaixo da camisa podendo com esforço, naturalmente, ler-se inclusive a marca das “batatas comboio”. No ar, embrulhado pela língua grande do mongolóide, ficou um arrastado arre’macho igual ao que tocava as bestas a caminho da charneca.
Ah, meu malandro! Agora dava cabo de ti… disse o pedreiro, desvairado pelo ardor que vinha do lombo das costas, semelhante a ferrão de vespa. Não lhe faças nada ó Zé, desculpa lá o rapaz, que ele, coitadinho, não têm culpa de ser “doente”, disse-lhe a Maria Galega que assistira a tudo.
Inconformado seguiu o seu caminho, mas agora sem apetite para a bucha da tarde, contudo a “vingança” não tardou a chegar. Passados uns tempos os dois encontraram-se, um para reconstruir um poço, que parecia pequeno para regar as hortaliças, o outro porque cirandava por perto. De pronto saiu a oferta, - Oh Torcato, queres ganhar uma navalha? Quero, disse o rapaz pouco convencido. - Ela está no fundo do poço, é nova e caiu lá para dentro agora mesmo. Como o pedreiro precisava de água para enrolar a areia e a cal hidráulica, diz-lhe sem piedade, tiras a água aqui para o tanque e depois de esgotado o poço, tiras a navalha. Contrato feito, o rapaz lá foi enchendo o tanque de apoio à horta que, os da casa, nos calores do Verão usavam como piscina. Cansado de tanta água tirar e não ver o fundo ao poço, nem tampouco a cor da navalha, Torcado desiste. As mãos cheias de bolhas, causadas pela corda áspera de sisal, seguiam agora a direcção dos bolsos. O tanque estava praticamente cheio e o Zé não precisava tão cedo que usar o balde e a roldana. A pequena vingança estava consumada e estavam agora quites.
Cada um seguiu o seu caminho, sendo que ao rapaz tudo haveria de parecer simples na sua ingenuidade que o seu corpo grande continha. José continuou, até que a saúde permitiu, abrindo poços a pulso, uma espécie de compulsiva "geofagia" que comunicava com os límpidos lençóis freáticos.
Hoje são máquinas perfuradoras que entubam o solo e trazem até à superfície o precioso líquido. Não seria possível com pá e roldana, tijolo e cadernais, descer tão fundo por isso, hoje, já não existem construtores de poços, nem hortas para alimentar famílias numerosas, nem “alcatruzes” para subir e descer nos poços, ao ritmo da burra que, a passo curto fazia rodar a “nora”. Hoje, com o milagre da água no cano, esquecemos o trabalho árduo e perigoso dos homens da terra que se aventuravam no interior da Terra.
quarta-feira, 14 de julho de 2010
GRANDE MALHA
Há muito tempo atrás, no tempo em que os automóveis ainda não plantavam, as ruas e os passeios, com as suas raízes de borracha, regadas amiúde por rafeiros sem dono, podia-se brincar "à vontade".
O tempo real parecia mais demorado, por isso dizermos hoje que, naquela época, havia tempo para tudo. Por assim dizer, havia, no falar dos mais simples – que eram quase todos - muito “v a g a r”.
Como haviam poucos automóveis, está justificadamente claro que era com dificuldade que se viam passar alguns deles naquelas ruas esquecidas do bairro nascente que, com dizia o Poeta, (saudoso amigo Francisco Henriques), terá “nascido das areias do deserto”. Alguns dos arruamentos, eram até evitados, manifestando os condutores, uma espécie de ostracismo resistente que os fazia escolher os de piso melhor conservado.
As ruas eram,por assim dizer, o sítio onde tudo acontecia. Muitas, naquele tempo, eram praticamente indefinidas por entre tapumes de rede e cana. A rua era uma espécie de extensão da casa que servia para guardar lenhas e alfaias, pilhas de canas, restos de obras e lixos vários, era até possível esticar a rede de “2 tombos” para apanhar os "verdilhões" mais gulosos por “bicho do canoilo”.
A rua, pertença de todos, era naquela época, mais de uns do que de outros.
Na rua jogava-se à bola e na rua despejavam-e as águas sujas das lavagens do quintal, ou da pocilga dos animais. Um fio de líquido castanho, perfeitamente identificável, tentava a custo infiltrar-se na terra batida, enquanto isso ficava por ali a desnortear as moscas. Na rua se cortavam lenhas, se lavavam “cascos”, se estacionavam carroças e latões da vindima. Na rua se sentavam as pessoas, em pequenos “mochos” ou no “pial” das portas, procurando o fresco que as casas não tinham. Nas ruas faziam-se fogueiras de S. João e nessas mesmas ruas, entre o Natal e os Reis, queimavam-se cêpos de eucalipto, que convidavam à conversa, à noitada e aos copos.
Mas, nas ruas mais largas e desafogadas, jogava-se à malha. Principalmente aos domingos, os homens, pouco dados a dominicais visitas à igreja, arranjavam maneira de matar o tempo, lançando pedras com força, contra “bichos” repletos de moedas de “dois e quinhentos”.
Escolhida a pedra, por entre milhentas hipóteses, sempre aparecia uma que melhor se ajustava à mão. Marcada a distância ao “marralho” e colocado o semi-círculo de pedra que murava as moedas, o jogo podia agora começar. Uma boa meia dúzia de jogadores da malha já tinham colocado as suas moedas e afastavam-se agora para a zona de lançamento, grosso modo, equivalente à distava entre ruas, na sua largura, bem entendido.
O peso da “malha” era directamente proporcional ao tamanho do lançador, por isso, o pedreiro, de mãos largas e pescoço curto, ostentava um bom pedaço de pedra que poucos ousavam lançar. Elevando o seixo espalmado à altura dos olhos, tirando “as medidas” certas para a trajectória, a mão destra do braço forte, descia junto à anca e, num movimento firme prá frente, ao mesmo tempo que a perna esquerda avançava, catapultava-se com força e jeito aquele generoso pedaço de pedra. A ideia era aterrar antes do “bicho” e fazê-la deslizar mansa e rente ao chão, para que o toque fosse suave e as moedas, espalhadas pelo embate, ficassem próximas da malha. Quem observava empolgava-se quase tanto como os que jogavam, mas havia cautelas que tinham de ser aplicadas, por isso, ai de quem se atravessasse à frente, para além do perigo, era “invasão de campo”.
A tarde caía e o Sol apresentava-se agora mais piedoso. Era altura de parar com o jogo e beber uma fresquinha no café do Reinaldo. Domingo que vêm há mais, porque alguém pediu a desforra. Havia agora que trocar as moedas que pesavam nos bolsos fundos das calças. Sai uma imperial preta e um pires de camarão do rio! … afinal são duas, que o Manel João também bebe.
terça-feira, 13 de julho de 2010
HOJE HÁ “COMÉDIAS”
Na pacatez das aldeias, ou em pequenas vilas como a nossa, os saltimbancos aportavam nos largos e nos cruzamentos mais francos e instalavam-se acreditando com eles ter chegado “o maior espectáculo do mundo”. Eram errantes como os gatos sem dono e apareciam para mostrar a espectacularidade das suas habilidades circenses. Para aumentar a expectativa e servir de “cartaz”, começavam por montar o “perigoso” trapézio. Duas verticais metálicas, uma barra horizontal, 3 pares de espias metálicas cravadas no saibro duro e uns quantos cabos esticados amparavam a periclitante estrutura que, exactamente no meio exibia um baloiço rematado a fio vermelho, o mesmo onde a estrela da companhia haveria de se exibir à luz frouxa da gambiarra.
Era importante criar empatias com os moradores, uma vez que o espectáculo e parte do seu dia-a-dia por estas paragens, dependia destes. Água e “luz”. Especialmente a última fundamental para a realização da performance, sem ela, no escuro da noite, as gastas lantejoulas do maillot da contorcionista não seriam vistos nem os olhos “arremelgados” daquele parente que há muito não via uma mulher jovem, assim exposta, em trajes menores.
A hora era esperada com ansiedade, pois não era todos os dias que havia “comédias”. O saguim, de pêlo dourado-esverdiado de olhos pequenos e vivazes, preso pela coleira, subia e descia as cordas enviesadas que sustinham o trapézio. A rapaziada ria-se das macacadas, mas não ousava tocar-lhe. Diziam que mordia como um cão e por isso ninguém queria experimentar, na pele, os dentes afiados do símio africano.
Estava na hora. As pessoas iam-se juntando por pequenos grupos, sendo que os mais novos, há muito que por ali estavam, tinham jantado à pressa, como faziam a maior partes das vezes, só que agora por outra razão que não a brincadeira de rua.
O fio que saia da loja do gaveto, trazia a luz emprestada. Estava tudo a postos. O círculo desenhado pelos espectadores à volta dos tapetes estendidos no chão, estava agora fechado, mas os seus anéis iam aumentando à medida que os retardatários, resmungando, que não valia a pena perder tempo pra ver aqueles pobretanas a fazer uns malabarismos, se colavam nas costas dos que a custo mantinham as suas posições.
Chegou o apresentador que, com voz firme, foi agradecendo a presença… que valia a pena esperar para ver os artistas que se preparavam para mostrar o que raramente se via por aquelas bandas. Pediam-se palmas e o público ofertava-as. Eis que se encaminhava, para o eixo do círculo, a jovem e maleável contorcionista que se rebolava no tapete, tentando fazer a “ponte” perfeita e, a custo, puxava a ponta da sapatilha para junto do nariz, dobrando a perna por cima da cabeça. Ouvia–se o peso do pequeno corpo a tocar o tapete e essa proximidade tornava a coisa mais real. Da corda formada pelas pessoas mais afastadas, seria impossível ver a rapariga que se esfalfava para mostrar o seu “número”.
Apareceram depois dois palhaços - uma trupe - como se diz em linguagem circense que, a custo, faziam saltar gargalhadas. Tocavam, não sei bem que instrumentos e com a sua música de cordel, saíram de cena tentando fazer um feedout sonoro que não funcionava.
Chegou a hora da trapezista, suspeito que a rapariga é a mesma que actuara no tapete, embora o “fato de banho”, outrora de cores vivas, fosse diferente, bem como o “apanhado" do cabelo.
Subia a pulso a corda que a levava ao balancé vermelho. Sentou-se e começou. Perna para dentro, braço para fora, sem mãos, dependurada pela concha das pernas ou suspensa apenas numa, lá ia a moça evoluindo, rematando as “avarias”, elevando o braço e rodando a mão aberta, como fazem as bailarinas indianas, dizendo… “oliopsssss”. Desceu e sumiu-se para fora do alcance das luzes.
Entrava agora uma anafada senhora, talvez a matriarca do grupo, que já não tinha pernas pró trapézio e em “fim de carreira” limitava-se a “bordar” recortes em papel de seda. Como se de magia se tratasse, a gasta senhora, que tentava com o excesso de pintura esconder o cansaço dos anos, de braços atrás das costas, para aumentar a dificuldade (e esconder o processo) ia, ao som de música articulando as pernas numa espécie de dança, ao mesmo tempo que talhava no papel, dobrado em triângulo, qualquer coisa para nos surpreender. Alguns minutos depois… eis senão quando, desdobrando o que houvera feito atrás das costas, e para espanto dos mais ingénuos, fazia aparecer, da tal folha de papel vermelho, uma “toalha bordada com mil recortes”, levando os parolos a questionar como teria ela conseguido, sem ver e sem tesoura, fazer coisa tão intrincada.
O público do anel exterior safava-se agora, de fininho, precisamente na altura em que se iniciava a colecta por entre o público. Os tais que tinham ido a custo, mas que se tinham mantido até ao fim, eram os pobres de espírito que se afastavam agora da justa mendicidade.
Tudo isso acabou, ficando apenas as memórias do tempo em que havia os “circos da 3ª Divisão”.
“RISCADO” PRÓ FATO
Toda a gente sabe do jeito especial dos ciganos pró negócio. É uma espécie de karma, que com eles nasce e que não os abandonará jamais. Trabalhar sim, mas nas suas “artes” tradicionais, nada de horário com entrada e saída e muito menos um patrão que lhes diga quando e como fazer. São por isso, uma classe social que se particulariza pela especificidade da sua cultura, antes nómada, fundamentada nas tradições ciganas de apego à família e defesa do clã e cada vez mais fixa, “inserida” e integrada na vida social da terra que acabar por ser, também, a sua.
Existe, talvez, o sentimento de que, embora fixando-se, cigano será de todo o mundo e de nenhum sítio em particular. Bom, mas à parte tudo isso, os que nasceram, brincaram, aprenderam na mesma escola, cresceram e morreram na zona do nosso bairro, eram os nossos ciganos… e pronto.
Alguns, vendiam tecidos porta-a-porta ou nas feiras montavam banca, outros eram especialistas em tosquiar gado muar, como o falecido Chico,que se ajeitava com as tesouras, fazendo junto das crinas trabalho de verdadeira mestria, rematadando junto à cauda com elaborado desenho geométrico que decorava a zona terminal da besta, ligeiramente acima do dito-cujo, por onde, e em situações pouco previsíveis, a aventesma haveria de expelir a palha ruminada lentamente, em forma de bolas redondas de cor e cheiro particular, que mal comparando parecia um pastel de bacalhau formato big mac. Mas nem tudo era desperdício, pois, algumas pessoas recolhiam-nos à porta de casa para com eles estrumarem a terra do canteiro dos nabos. Boa sopa haveriam de fazer com eles… belos nabos, benza-os deus!
Mas voltando ao que nos trás aqui, a malta cigana sempre teve dedo pró negócio e nunca perdia a oportunidade para o fazer, nem que isso implicasse muito regatear e ai quase sempre saiam por cima, por lhes ser reconhecida capacidade oratória, uma espécie de “namoro” que inebriava o ouvido e abria a carteira.
Ninguém, nessa altura, no seu juízo perfeito, emprestava dinheiro a um cigano. Mas o conhecido nómada, de “corte” ao ombro, depois de se ambientar e beber um branquinho na taberna do “Pipino”, sem medos, “arrefimba-lhe; Oh Se’João não me empresta ai, cinquenta mil reis que eu amanhã já lhe pago? – Cinquenta paus? Ripostou o taberneiro, homem sábio e bom de trato que estava cansado de propostas idênticas às quais habilimente sempre se tinha esquivado. Cinquenta paus é dinheiro, só tenho aqui trinta, disse o velho homem ciente de que teria resolvido ali a questão. Pode ser, diz de pronto o cigano ajeitando o bigode mal aparado que decorava a cara escura iluminada por uns olhos pequenos e vivos, dê-me cá os trinta… e fica-me a dever vinte!
Quer-se dizer, o taberneiro ficava assim, desta curiosa forma, a dever dinheiro ao cigano. No banco corrido de madeira, de frente ao depósito “aéreo”, alguns indigentes, pulhas e velhos, que “esfumaçavam Definitivos”, gargalharam com gosto. Da mesma forma que a peça de riscado não saiu do ombro do cigano – tecido bonito, temos de dizer, de fundo escuro, impecável, decorado com linhas suaves de cor cinza - também a nota da “rainha santa Isabel” não saiu da caixa das moedas.
Continuaram amigos (por conveniência talvez), até porque aquele sítio, encravado num cruzamento importante, onde uma errante trupe de saltimbancos várias vezes esticou os fios do trapézio, era uma espécie de porta-aviões, onde sempre se podia aterrar os ossos os descansar os cotovelos sobre o balcão de pedra e pedir um “copo”… dos grandes.
Já nada disso existe, pelo menos, desta forma. Já poucos são os alfaiates, capazes de darem forma à “calça por medida” e já não se vêem vendedores dispostos a transportar até ao cliente, ao ombro e em exclusivo, aquele tecido estrangeiro, com um “cair” fantástico, que transformava quem o vestisse, num verdadeiro “princês”.
segunda-feira, 12 de julho de 2010
BRIQUES SÃO TIJOLOS
Por altura das férias de Verão, rara era a rua, da outrora Vila, que não via estacionado um Renault ou um Peugeot de matrícula estranha, de onde sobressaía, colado no painel traseiro um autocolante com a letra “F” enquadrada por uma pequena bandeira tricolor.
Se dúvidas houvessem, quanto à origem de viatura tão moderna, seriam desfeitas logo que chegássemos ao café do bairro. Era neste local, ponto de encontro informal dos que vinham matar saudades da terra, que se ouvia, por entre o “falajar” dos nativos, o sotaque inconfundível do “franssuguês” acabado de chegar. Com ele chegou também a família, que por lá atracou depois de garantida a segurança do lar e do “travail”. Vinham perfumados e vestiam roupas “estranhas”, coloridas, ousadas até, e também pulseiras de ouro por entre o relógio, e ao pescoço, o pouco original crucifixo. Elas ousavam também, nos penteados e nas “pinturas faciais”. Nem sempre era assim, mas elas faziam limpezas para ajudar a amealhar e eles integravam o pelotão da imensa mão-de-obra que ajudou a construir certas zonas de França.
Espalharam-se por tudo o que era lugar, e para nós, que conhecíamos mal a geografia gaulesa, imaginávamos estarem todos pertos uns dos outros, ou pelo menos, que seria possível cruzarem-se por lá. É certo que fortaleceram os laços, organizando-se em associações sociais e culturais, espaços de “reflexão” para quem está longe da “pátria lusa”.
Falando alto, junto ao balcão, o “francês” expunha a anedota; num dos bidonville de Paris, onde muito portugueses (compreensivelmente) haveriam de viver até se mudarem para verdadeiras casas, alguém se lembrou de, na ponta de uma “varola”, espetada no meio do aglomerado, hastear a bandeira de Portugal, como se aquele território, dentro da cidade, fosse uma ilha com regras e língua próprias, claro, veio a polícia e mandou arrear “le drapeau bicolore”. Com os “irredutíveis gauleses” não se brinca. Depois, está por lá muito “filho de muita mãe”, “algerianos”, marroquinos, vindos como nós à procura do “el dorado”.
Das férias por cá passadas, ficava muitas vezes a lembrança, deixada na forma de uma bola de cauchut, rara por estas bandas, de gomos brancos e pretos, como as “oficiais”, com a qual haveríamos de disputar longos jogos em campos de terra solta e balizas marcadas por pedras. Passa, passa, … passa a boooola! Eh pá, já não se vê nada, amanhã jogamos mais.
Partiam como chegavam, em silêncio, agora com os carros cheios de mimos da terra, azeite e melões prá viagem. Ao revoir, que é como quem diz até pró ano oh “franciu”, quando voltares, ao passares por Badajoz, trás de lá uns caramelos daqueles que se colam aos dentes.
DEIXA ARDER, QUE O MEU PAI É BOMBEIRO
Nesta paisagem de transição onde nos integramos, que separa a nossa região do Alentejo, faz calor pra caramba. Nos dias em que os termómetros chegam aos 40, o que não é difícil nesta região ou nesta época do ano, fazem com que o alcatrão das estradas, ao longe, pareça estar molhado, miragem tremeluzente que nos confunde, como aos perdidos no deserto.
Os pastos e os campos pejados de verde e de flores espontâneas que pintam a nossa paisagem de cores mil, passam a palha seca, quase de um dia para o outro, e tornam este material altamente combustível, que qualquer “pirisca” mal apagada transforma num tapete de cinzas “em menos de um fósforo”. Dentro da cidade, os cuidados com a segurança são também para ser levados a sério e, por essa razão, palhas, madeiras, lenhas prá lareira, botijas de gás, grelhadores, barbecues e outras artes do carvão devem ser praticadas com muito cuidado, porque se o fogo pega... vamos ter de chamar os Bombeiros.
Antigamente ser bombeiro era pertencer a um grupo de homens destemidos que vestiam a farda a qualquer hora do dia ou da noite a troco de pouco mais que, nada. Incondicionalmente, e sem saber que socorro os chamava, saíam dos empregos, do café ou da cama, com frio, com chuva, ou debaixo do “estúpido”calor do Verão, sempre que o toque aflito da sirene os chamava.
O silvo que percorria o ar mexia com todos, que se perguntavam numa tentativa de adivinhar a causa da aflição. Quem está a precisar de ajuda? Se o toque era demorado e parecia interminável, era pela simples razão de que o “bombeiral” não tinha saído do quartel e isso aumentava a ansiedade de todos. “Três toques”, era acidente, dizia a “sabedoria” popular, mas, nem sempre era assim.
Rápido a pedalar na sua bicicleta roda 28, passava o saudoso “Monarca” a caminho do quartel, gatilhando a campainha de metal que avisava para deixarem passar o homem que seguia em socorro de quem dele precisava. A bicicleta entrava, à pressa, no antigo quartel e ai deixada até, sabe-se lá quando. Pintadas de rubra cor, as letras dispostas em semi-círculo sobre o portão largo de metal, identificavam a associação dos Bombeiros Voluntários de Almeirim.
O autotanque de marca estrangeira, potente mas lento, abençoado pela sua madrinha no dia inaugural, saia a caminho do local, carregado de água, de escadas e mangueiras e de homens que, sentados na viatura, ajeitavam as fardas e ajustavam o francelete dos capacetes de latão que o sol espelhava. A vibração e a excitação da azáfama junto ao quartel, passava aos mirones que por ali se juntavam, tentando obter informações sobre o acontecido.
Tratava-se de fogo no mato, coisa de pouca importância. Metade do autotanque chegava para estancar a fúria das chamas que, vencidas pela água lançada à pressão pelas mangueiras de lona seguradas, a pulso firme, pelo destemidos “soldados da paz”. Feito o rescaldo, era hora de arrumar o equipamento e regressar ao quartel, onde o desejado e justo banho retemperaria as forças. Era hora de arrumar o cinto e o machado e pousar o capacete que necessitava de estar impecavelmente areado para logo à noite… serviço de segurança ao cinema. No cartaz da sessão de sábado, às 21h30, iam passar os “Sete Indomáveis patifes”, na matiné de domingo “Trinitá Cowboy Insolente”… pancadaria bravia.
domingo, 11 de julho de 2010
TAXI DRIVER, MAS POUCO
Antigamente as distâncias não eram as mesmas. Das duas uma, ou os sistemas métricos eram diferentes, o que francamente não pode ser, visto afinarmos pela convencional medida europeia conhecida como “metro”, com os seus múltiplos e submúltiplos, dos quais se conhecem também as “léguas submarinas”, (estranho) sistema de medição usado por Júlio Verne no seu livro de aventuras (que consultando o “conta léguas submarinas” seriam perto de 20 000), ou a nossa relação com a envolvente era falha de rigor.
Talvez, nessa idade, tudo nos parecesse mais longe, mais alto... mais forte… (onde é que já ouvimos isto?). De uma forma ou de outra, “ir lá abaixo, era longe pra caramba. As pessoas referiam-se assim quando falavam em descer à Vila, ao seu coração administrativo, ao mercado municipal, à “pharmácia”, às compras mais delicadas, a outro tipo de mercearia. Ir “lá abaixo” era diferente de ir “à pontinha”, que como o nome indica, era quase sair do burgo a caminho de Santarém.
Nesses tempos, em que os bairros se encontravam, por razões de planeamento (planeamento???) urbanístico, afastados uns dos outros, era possível perceber os seus limites, ou pelo menos definir as “fronteiras” entre os vários “estados laicos”, ditos assim a brincar, por não haver capelas ou oragos para venerar. As igrejas, capelas ou “passos” da “via Ápia” estavam todas na parte antiga. Nestes aglomerados de gente, maioritariamente remediada, de que o bairro do Pupo (consequência da visão de um homem sabedor e humanista, ligado à agricultura, que possibilitou aos assalariados rurais, em finais de 50, adquirir o seu próprio lote urbano) serve aqui de exemplo, pela singularidade dos seus habitantes, verdadeiro “caso à parte” em identidade bairrista, para colocarmos aqui a questão os táxis.
Apenas no núcleo central se podia pisar alcatrão, tudo o resto era seixo rolado e muita terra batida que no Verão se transformava num pó fino a “atirar” pró escuro e nos Invernos diluvianos se transformava em lama pegajosa e salpicante. Digamos que, a partir do cruzamento do “poço da morte”, que cruzava as “Milheiras” com os “Aliados” o alcatrão se eclipsava dando lugar a um trilho minado, já despoletado, do qual restava uma tormenta de buracos, com ou sem água, que faziam com os taxistas blasfemassem cada vez que o serviço era para tais bandas.
As viaturas, estacionadas junto ao Jardim da República, estavam quase sempre impecáveis, uma vez que os taxistas passavam os tempos livres a lavá-los com balde e esponja. O “carro de praça” era uma ferramenta de trabalho que o chouffer tentava manter num brinco. As cores características preto e verde ervilha, que o sol desbotava, tornava inconfundível a viatura de aluguer, que servia bastante para levar as pessoas que não tinham viatura para chegar à estação de comboios ou ao hospital ou estavam incapacitados de o fazer pelos seus próprios meios. “Chamar” um táxi era luxo e por essa razão evitava-se.
Nem todos, naturalmente, tinham pelos bairros periféricos o mesmo sentimento de desprezo mensurável pela falta de simpatia observável na expressão do rosto ou na ausência de diálogo para o cliente que acabara de o contratar para o “frete”.
Felizmente que o alcatrão surgiu, não sem antes, por baixo, se colocarem as condutas de esgoto, coisa importante trazida com os ventos de Abril.
Agora que a cidade se apresenta de asfalto calçada em praticamente todas as ruas, excepção feita às que ainda mantém o tradicional e super-trepidante seixo rolado, os táxis podem sem temor, resgatar os seus clientes sem medo de enlamear a pintura, sendo certo que a acontecer tal infortúnio, a cor creme-macilento que hoje ostentam lhe dá a garantia de camuflagem.
Façam-nos um favorzinho, troquem lá essa cor, que “não está com nada” e voltem a pinta-los de negro e ervilha. Não é de revivalismo que falamos é de cultura nacional.
Leva-me à estação da Ribeira, se faz favor?
sábado, 10 de julho de 2010
PAPAGAIOS DE PAPEL
Em miúdos, sem percebermos nada de aerodinâmica, conseguiamos pôr a voar um papagaio feito de papel e cana. Em adultos, a maior parte de nós, continua a questionar como é que aquelas pesadas máquinas voadoras, que cruzam os céus por cima de nós, carregadas de gente, de malas, de todas as cores e feitios, de correio que urge em chegar e de depósitos a abarrotar de combustível, puxados para baixo pela implacável força da gravidade, conseguem voar sem “dar às asas”.
O voo dos pássaros sempre fascinou as mentes mais inquietas, como a de Leonardo, por exemplo. Experimentar a sensação de liberdade das aves, olhar a paisagem em “picado”, ou migrar para outras paragens acompanhando a “maré” dos ventos, sempre foi desejo libertário do Homem, por isso meus amigos, quando os rapazes se juntavam para fazer os papagaios, havia ali uma inquietação que qualquer psicólogo explicaria facilmente. Quero acreditar que muito do voluntariado para as tropas aerotransportadas vem desse desejo recalcado, se bem que, saltar não é propriamente voar.
Passando ao que interessa. Para os construir eram necessários os materiais, as canas, o “cordel das chouriças”, a cola, feita com farinha de trigo amassada com água, e o papel. Convinha, antes de mais, escolher bem as canas, sendo que estas podiam encontrar-se ali, “à mão de semear”, ora como pau-da-roupa, como vara para caiar, ou ainda servindo de apoio ao enleante feijão verde da horta.
Retalhadas ao meio com cuidado, para a simetria se manter, era feita a cruzeta inicial, à qual se juntaria uma terceira cana, de igual tamanho que, bem apertada no eixo das duas, formava a estrutura rígida do papagaio em forma de estrela de 6 pontas. Havia agora que ligar as ditas, usando o mesmo cordel cor de areia, levemente encerado, que servia para atar a “tripa” dos enchidos.
Construindo o losango, com canas e cordel, estávamos prontos para iniciar a aplicação do papel comprado na mercearia de bairro, a mesma que vendia o petróleo e os sabões, as sêmeas para os animais, a alpista para os pássaros de gaiola, o “vinho ao garrafão”, os fósforos e os “mata-ratos”. A cor era escolhida pelo que havia em prateleira; azul, amarelo ou vermelho, sendo que, muitas das vezes se colavam duas folhas de cor diferente para dar estilo à máquina voadora.
Colar, com amido, obrigava a colocar a quantidade de água certa e a distribuí-la uniformemente com a ponta do dedo ao longo da badana deixada “a mais” em toda a volta, para aprisionar o cordel entre o papel. Era importante reforçar, junto ao eixo, com um círculo de papel mais encorpado, para que não se rompesse na zona onde se atava o fio principal. Outros dois pedaços de cordel, saídos das duas extremidades superiores, deviam ser atadas tendo em atenção a inclinação do conjunto lá no alto. Estava a esquecer a tesoura, usada com mil cuidados e emprestada com mil avisos, que por ser ferramenta de costureira e afiada com sabedoria pelo galego amolador, deveria ser devolvida quanto antes.
Com ela eram feitos os pormenores, ou seja, as franjas que decoravam os remates junto à extremidade das canas. Era giro ver aquilo a abanar com o vento. Dois ou três rolos de cordel enrolados em “oito” num pequeno pau de eucalipto, chegavam para ver aquele espectáculo colorido, afastar-se de nós a caminho dos céus. A distância, e a curva feita pelo cordel a caminho do eixo, desmaterializavam-no e confundiam-no com o céu, criando em nós a falsa ilusão de que “voava” sozinho.
Havia-os em formato de “bacalhau”, que ficava sempre bem com o seu “rabo” colorido, feito com pequenos trapos, atados espaçadamente. O tamanho desta cauda era testada e o equilíbrio da “aeronave” dependia do seu peso. Para lançar o papagaio bastavam duas pessoas, o que segurava e o que puxava, sendo que, a responsabilidade maior, cabia ao “piloto” que corria na pista esperando que, atrás de si, aquele espectáculo de papel colorido se elevasse descolando a cauda do solo a caminho do éter.
Com a chegada da maravilha da luz eléctrica, as ruas encheram-se de postes e “postaletes” e os “fios da luz” passaram a ser uma armadilha para a “aviação” de papel e cana.
Se uns viam com bons olhos o anunciado progresso, outros, crianças, com uma visão limitada do mundo, só não os cortavam porque não podiam. Por isso era frequente ver os despojos de algumas dessas máquinas, outrora objecto de orgulho e de disputa, a abanar no estendal dos fios da “Hidroeléctrica Alto-Alentejo”, enviando s.o.s. de resgate aos pilotos da eira.
sexta-feira, 9 de julho de 2010
RITA, DE SEU NOME
Antigamente a escola não era igual à de hoje… e ainda bem!
Com o passar dos anos vieram as mudanças, os estatutos sociais alteraram-se, as políticas também e um professor “primário” está longe de ter estatuto de “importante”. Este grau conferia-lhe, em tempos idos, uma sobranceria equiparada hoje à dos jovens gestores bem sucedidos, daqueles que usam botão de punho herdado do avô paterno. Um professor jamais será “autorizado “ a bater num puto, como o faziam até aos anos setenta (pelo menos), mesmo que, incentivado pelo pai ausente, rústico e pouco sensível que ao professor dizia -“se ele se portar mal, o senhor professor, não lhe perdoe”- Ora, era o que docente (indecente) queria ouvir.
A coberto da insensatez do pai, aquilo eram favas contadas e então quando os trabalhos de casa coincidiam com as brincadeiras de rua, o mais certo era a mala ficar fechada até ao dia seguinte. Como os pais dos meninos, muitos deles analfabetos, tinham mais que fazer, a pergunta sacramental era - “fizestes” os trabalhos da escola?. Nos sessentas, havia aulas também ao Sábado, até ao meio-dia, um pouco diferentes é certo mas igualmente obrigatórias.
Desses tempos, do quadro de ardósia e do apagador de feltro, do estrado ao canto da sala, onde se apoiava a secretária do “mestre-escola”, da “cana da índia”, comprida e seca que acabaríamos por descobrir (na pele, e nas orelhas) que não servia só para apontar o mapa de Portugal. Normalmente a vara de bambu, semelhante a cana-de-pesca sem passadeiras, era presente de um colega “estúpido” que logo-logo ia descobrir que seria o primeiro a estreá-la. Na parede, sobre o quadro e a porta, ladeando um crucifixo de madeira com a representação em metal, disputavam importância dois retratos a preto e branco; o senhor Presidente do Conselho, que acabaria por cair da cadeira (ou foi da banheira?) e o senhor Almirante, esposo amorfo da Dona Gertrudes, conhecida pelo seu penteado tipo juba de leão. Os dois, omnipresentes em todas as salas de aula, observavam-nos a cantar o hino nacional, de pé, e a apanharmos com ela, em ambas as mãos.
Nenhum dos três, dependurados na parede da sala, tinha pena de nós. “Abandonadas” na escola, as crianças tinham pouco estatuto. Eram crianças que um dia seriam homens, e pronto. Dentro da sala ninguém nos podia valer e então quando era dia de distribuir as provas, feitas em papel azul de 25 linhas, o estômago revolvia-se tentando reter o papo-seco comido à pressa ou a caminho da escola. Era difícil manter a calma perante a saraivada de reguadas que se adivinhava. A uns mais do que a outros, naturalmente, mas sempre havia aquele “bombo” que servia de “saco das marradas” e de exemplo. O que nos salvava as mãos, postas ao rubro em menos de duas reguadas, era o ferro forjado das “carteiras” que, pela sua condição de metal se conserva fresco e nos supria a dor. Um bálsamo sempre a jeito, para ambas as mãos. O professor, em solene ritual, tirava o casaco, aliviava a gravata, arregaçava as mangas da eterna camisa branca e chamava pelos nomes. Sobre o tampo da secretária, mas em cantos opostos, lá estavam os exercícios, os “maus” de um lado e os “bons” do outro, sendo que o nosso podia estar em qualquer um dos cantos. Por incrível cobardia, o nome escolhido para a régua com que amiúde e com força, nos mostrava na palma das mãos, chamava-se Rita.
Era esse o nome dado aquele pedaço de tábua, que um dia partiu o relógio ao Casimiro, não só por este usar o mostrador virado prá palma da mão, mas também por ter errado as contas de multiplicar com 3 algarismos.
ARROJO E AUDÁCIA
Por altura da Festa do Senhor dos Passos, havia em Almeirim, um magnetismo que nos atraía para o Largo dos Charcos. Duas coisas aconteciam com igual importância, uma festa religiosa, com procissão solene, que nos reforçava a fé e nos convidava a vestir a nossa melhor roupa e outra, de índole pagã, não menos importante, mas bem mais divertida.
Era assim em Abril, coincidindo com Páscoa, todos os religiosos anos. Quem não se lembra do colorido e inquieto carrossel e dos “corta-bilhetes”, pulhas errantes, nómadas “sem eira nem beira”, actores daquele palco circular em movimento, que entravam e saíam da onda em movimento, de costas, de frente, de lado, esquivando-se aos cavalos e às girafas, ou dando corda aos “penicos”, como se não bastasse já os altos e baixos da plataforma a rodar em círculo, ainda girava o dito sobre o seu próprio eixo. Era de pôr as tripas em reboliço e a cabecinha “amareada”. Dos carrinhos de choque e da voz estridente do altifalante que anunciava mais uma viagem, das barracas de tiro, verdadeiro antro de devaneio onde mulheres de decote generoso e cabelo pintado convidavam languidamente os curiosos - “oh simpático, vai um tirinho?”, enquanto carregavam a “flaubert” de mira desalinhada. As pequenas bolas de papel prateado e colorido, cheias de serradura, dependuradas na ponta de um elástico, não sei bem para que serviam, já a roda da “sorte” encravada entre os passantes, servia para tentar a fortuna. Ganhar uma “gaita-de-beiços” (talvez o mais apetecido dos prémios), um canivete, um baralho de cartas ou mesmo um pente, tornava vitorioso o ingénuo apostador que acreditada ter sido ele (apenas) a controlar o balanço da roda.
No ar misturava-se o cheiro do frango assado no carvão, vendido nos restaurantes de feira, com a fragrância das amêndoas coloridas, cujo sabor jamais será o mesmo. Mas, de entre as muitas e curiosas coisas que a feira nos podia oferecer, havia uma que fascinava novos e velhos. O Poço da Morte – “Nelson & Ruthe, arrojo e audácia, num desafio permanente com a morte…”. Numa plataforma que elevava os artistas ao nível dos nossos olhos, uma BSA a 4 tempos, negra a rolar sobre cilindros.
O chamariz estava montado. Atrás do Nelson, que vestia camisa preta e calça breeche de cor caqui dentro de uma botas altas “de montar” impecáveis, o poço de madeira, misterioso e perigoso, marcado por dentro pelos rastos dos pneus nas paredes verticais onde, várias vezes por dia, se desafiava a morte. O rolar sobre os cilindros fazia vibrar a estrutura e aumentava a excitação dos mirones, crescendo em expectativa cada vez que “punha” uma mudança ou se colocava de pé sobre o motociclo, equilibrando-se entre o banco e o guiador. Duas enormes imagens dos protagonistas, realisticamente pintadas, faziam a diferença entre as demais. Estas imagens, de escala “gigantesca”, representavam os destemidos motociclista. Ruthe vestia igualmente “calças de montar ”, bota alta e luvas negras, diferindo de Nelson apenas no “corte” da blusa e do cabelo.
As altas lonas pintadas, esticadas na vertical, faziam lembrar as telas que anunciavam os filmes da Ava Gardner ou da Gloria Swanson. Memória feliz a do Poço da Morte no largo dos Charcos.
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