quarta-feira, 14 de julho de 2010
GRANDE MALHA
Há muito tempo atrás, no tempo em que os automóveis ainda não plantavam, as ruas e os passeios, com as suas raízes de borracha, regadas amiúde por rafeiros sem dono, podia-se brincar "à vontade".
O tempo real parecia mais demorado, por isso dizermos hoje que, naquela época, havia tempo para tudo. Por assim dizer, havia, no falar dos mais simples – que eram quase todos - muito “v a g a r”.
Como haviam poucos automóveis, está justificadamente claro que era com dificuldade que se viam passar alguns deles naquelas ruas esquecidas do bairro nascente que, com dizia o Poeta, (saudoso amigo Francisco Henriques), terá “nascido das areias do deserto”. Alguns dos arruamentos, eram até evitados, manifestando os condutores, uma espécie de ostracismo resistente que os fazia escolher os de piso melhor conservado.
As ruas eram,por assim dizer, o sítio onde tudo acontecia. Muitas, naquele tempo, eram praticamente indefinidas por entre tapumes de rede e cana. A rua era uma espécie de extensão da casa que servia para guardar lenhas e alfaias, pilhas de canas, restos de obras e lixos vários, era até possível esticar a rede de “2 tombos” para apanhar os "verdilhões" mais gulosos por “bicho do canoilo”.
A rua, pertença de todos, era naquela época, mais de uns do que de outros.
Na rua jogava-se à bola e na rua despejavam-e as águas sujas das lavagens do quintal, ou da pocilga dos animais. Um fio de líquido castanho, perfeitamente identificável, tentava a custo infiltrar-se na terra batida, enquanto isso ficava por ali a desnortear as moscas. Na rua se cortavam lenhas, se lavavam “cascos”, se estacionavam carroças e latões da vindima. Na rua se sentavam as pessoas, em pequenos “mochos” ou no “pial” das portas, procurando o fresco que as casas não tinham. Nas ruas faziam-se fogueiras de S. João e nessas mesmas ruas, entre o Natal e os Reis, queimavam-se cêpos de eucalipto, que convidavam à conversa, à noitada e aos copos.
Mas, nas ruas mais largas e desafogadas, jogava-se à malha. Principalmente aos domingos, os homens, pouco dados a dominicais visitas à igreja, arranjavam maneira de matar o tempo, lançando pedras com força, contra “bichos” repletos de moedas de “dois e quinhentos”.
Escolhida a pedra, por entre milhentas hipóteses, sempre aparecia uma que melhor se ajustava à mão. Marcada a distância ao “marralho” e colocado o semi-círculo de pedra que murava as moedas, o jogo podia agora começar. Uma boa meia dúzia de jogadores da malha já tinham colocado as suas moedas e afastavam-se agora para a zona de lançamento, grosso modo, equivalente à distava entre ruas, na sua largura, bem entendido.
O peso da “malha” era directamente proporcional ao tamanho do lançador, por isso, o pedreiro, de mãos largas e pescoço curto, ostentava um bom pedaço de pedra que poucos ousavam lançar. Elevando o seixo espalmado à altura dos olhos, tirando “as medidas” certas para a trajectória, a mão destra do braço forte, descia junto à anca e, num movimento firme prá frente, ao mesmo tempo que a perna esquerda avançava, catapultava-se com força e jeito aquele generoso pedaço de pedra. A ideia era aterrar antes do “bicho” e fazê-la deslizar mansa e rente ao chão, para que o toque fosse suave e as moedas, espalhadas pelo embate, ficassem próximas da malha. Quem observava empolgava-se quase tanto como os que jogavam, mas havia cautelas que tinham de ser aplicadas, por isso, ai de quem se atravessasse à frente, para além do perigo, era “invasão de campo”.
A tarde caía e o Sol apresentava-se agora mais piedoso. Era altura de parar com o jogo e beber uma fresquinha no café do Reinaldo. Domingo que vêm há mais, porque alguém pediu a desforra. Havia agora que trocar as moedas que pesavam nos bolsos fundos das calças. Sai uma imperial preta e um pires de camarão do rio! … afinal são duas, que o Manel João também bebe.
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