sexta-feira, 9 de julho de 2010
ARROJO E AUDÁCIA
Por altura da Festa do Senhor dos Passos, havia em Almeirim, um magnetismo que nos atraía para o Largo dos Charcos. Duas coisas aconteciam com igual importância, uma festa religiosa, com procissão solene, que nos reforçava a fé e nos convidava a vestir a nossa melhor roupa e outra, de índole pagã, não menos importante, mas bem mais divertida.
Era assim em Abril, coincidindo com Páscoa, todos os religiosos anos. Quem não se lembra do colorido e inquieto carrossel e dos “corta-bilhetes”, pulhas errantes, nómadas “sem eira nem beira”, actores daquele palco circular em movimento, que entravam e saíam da onda em movimento, de costas, de frente, de lado, esquivando-se aos cavalos e às girafas, ou dando corda aos “penicos”, como se não bastasse já os altos e baixos da plataforma a rodar em círculo, ainda girava o dito sobre o seu próprio eixo. Era de pôr as tripas em reboliço e a cabecinha “amareada”. Dos carrinhos de choque e da voz estridente do altifalante que anunciava mais uma viagem, das barracas de tiro, verdadeiro antro de devaneio onde mulheres de decote generoso e cabelo pintado convidavam languidamente os curiosos - “oh simpático, vai um tirinho?”, enquanto carregavam a “flaubert” de mira desalinhada. As pequenas bolas de papel prateado e colorido, cheias de serradura, dependuradas na ponta de um elástico, não sei bem para que serviam, já a roda da “sorte” encravada entre os passantes, servia para tentar a fortuna. Ganhar uma “gaita-de-beiços” (talvez o mais apetecido dos prémios), um canivete, um baralho de cartas ou mesmo um pente, tornava vitorioso o ingénuo apostador que acreditada ter sido ele (apenas) a controlar o balanço da roda.
No ar misturava-se o cheiro do frango assado no carvão, vendido nos restaurantes de feira, com a fragrância das amêndoas coloridas, cujo sabor jamais será o mesmo. Mas, de entre as muitas e curiosas coisas que a feira nos podia oferecer, havia uma que fascinava novos e velhos. O Poço da Morte – “Nelson & Ruthe, arrojo e audácia, num desafio permanente com a morte…”. Numa plataforma que elevava os artistas ao nível dos nossos olhos, uma BSA a 4 tempos, negra a rolar sobre cilindros.
O chamariz estava montado. Atrás do Nelson, que vestia camisa preta e calça breeche de cor caqui dentro de uma botas altas “de montar” impecáveis, o poço de madeira, misterioso e perigoso, marcado por dentro pelos rastos dos pneus nas paredes verticais onde, várias vezes por dia, se desafiava a morte. O rolar sobre os cilindros fazia vibrar a estrutura e aumentava a excitação dos mirones, crescendo em expectativa cada vez que “punha” uma mudança ou se colocava de pé sobre o motociclo, equilibrando-se entre o banco e o guiador. Duas enormes imagens dos protagonistas, realisticamente pintadas, faziam a diferença entre as demais. Estas imagens, de escala “gigantesca”, representavam os destemidos motociclista. Ruthe vestia igualmente “calças de montar ”, bota alta e luvas negras, diferindo de Nelson apenas no “corte” da blusa e do cabelo.
As altas lonas pintadas, esticadas na vertical, faziam lembrar as telas que anunciavam os filmes da Ava Gardner ou da Gloria Swanson. Memória feliz a do Poço da Morte no largo dos Charcos.
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