sexta-feira, 17 de setembro de 2010

O “TRINTA VENENOS”









Não havia poça de água, deixada pela chuva, que ele não quisesse tapar com as botas.

A bata que vestia para a escola - que há 1 segundo atrás era branca – ficava minada de pingentes de lama castanha que eram prenúncio de uma saraivada de estaladas, com que a mãe, cansada de tanto avisar, o haveria de premiar, logo que chegasse a casa.
Mas o “trinta venenos”, comia e calava. Já estava habituado…e a mãe também. O pai perdera-o poucos anos depois de o ter conhecido, e só Deus sabe a falte que ele lhe fez.

No trajecto, a caminho da escola, Berto arranjava sempre maneira de chegar atrasado. Não é que saísse tarde de casa, porque a mãe cautelosa, sempre o acordava a horas decentes para se ajeitar para a escola. Mal acordado, comia à pressa, quase sempre o mesmo, pegava na mala e zarpava.

Já na sala, lembrava-se vagamente de ter passado pela casa de banho, que à época, era pouco mais do que o sombrio espaço onde se expunha uma sanita solitária que recebia os líquidos orgânicos da noite, trazidos no bacio de plástico, que em bebé se lhe colava às nádegas gordas, desenhando na perfeição, um circulo perfeito. Não se recorda se lavava os dentes, (modernices) e mesmo a cara, a ver pelas ramelas que lhe caem, verdinhas, sobre o caderno da redacção, provam-lhe que a água da torneira da “pinta azul”, nem lhe passou pela fronte.

No Inverno, as poças que tanto o atraíam, gelavam e nessa altura Berto baixava-se pegava com jeito naquela espécie de vidro líquido e olhava-o com admiração, tentando perceber o fenómeno nocturno que tinha deixado a água congelada e a terra polvilhada com um fino manto branco.

O trajecto era uma doce aventura. Não tanto a ida, mas mais o regresso da escola. Mesmo o que não se mexia, como os torrões da borda da estrada, eram pontapeados com requintes de ponta de lança, descarnando as biqueiras das únicas botas que alguma vez tivera, deixando no ar um prolongado “gooooooooolo” e o som oco da terra a desfazer-se em mil grãos.

Característico deste pequeno amigo, eram as “duas velas” esverdeadas que lhe pendiam das narinas sempre que o frio entrava pela pouca roupa que frequentemente trazia vestida. As ditas, subiam e desciam até ao lábio, formando dois pequenos pilares de jade translúcido e, sempre que estas se aproximavam perigosamente do “beiço”, Berto inspirava instintivamente, fazendo ambas desaparecer como num passe de mágica. De tantas vezes fazerem o percurso ascensorial, as ditas velas, misturadas com o pó do caminho, pareciam-me agora castanho-esverdiados.

A bata, que estava longe de ser imaculadamente branca ou limpa, apresentava quase sempre mais casas que botões, o que o forçava, ao abotoar, a alterar a lógica estabelecida, parecendo que a mesma tinha sido costurada para um “corcunda das costas”. E mesmo aquela espécie de presilha, que decorava a parte de trás da bata - que ainda hoje questiono para que raio servia – tinha dificuldade em manter-se cosida.
Digamos que ao Berto nunca haveria de calhar um prémio pelo atavio, nem qualquer outro prémio escolar, embora fosse o mais premiado de todos nós, pelas vezes sem conta com que esticava as mãos ao castigo. Numa coisa ele era o maior, apesar da fraca-figura, tratava-se da forma estóica com que aguentava a bravura da régua de encontro às pequenas mãos, ao contrário do calmeirão “burro-da-escola”, que fungava sempre que o pequeno ditador da sala o chamava ao quadro de ardósia. A sua cabeça, quase adulta, servia de badalo e, volta e meia, accionada pelo braço-relâmpago do professor, embatia na lisura da pedra negra, que imediatamente a repelia, fazendo do pescoço gordo do Quinzão a mola recuperadora da sua redonda cabeça. Se o Prof. Seles estivesse bem disposto, coisa rara num cinquentão empedernido, o grandão haveria de sair apenas choroso e não humilhado. Para afastar os demónios de infância, Quinzão alistou-se na Polícia.

Voltemos ao Berto, grande peça de artilharia costeira, grande amigo de infância, pobre rapaz feito homem, perdido nos seus pequenos pecados, lembrado como um dos que cresceu com a infância hipotecada pela madrugadora morte do pai, apanhado nas teias do trabalho precário e das drogas que o tornaram num ser transparente e pouco acreditado.

Precocemente envelhecido, este herói dos tempos de escola, sempre de bata desalinhada, continua perfilado à direita e à frente, naquela velha fotografia de grupo, carcomida pela luz dos tempos onde, incompreensivelmente o autocrático professor, fez questão de não aparecer.

Afinal o “trinta venenos” não era mau rapaz.

domingo, 5 de setembro de 2010

LOJA DO CHINÊS












De tanta coisa que tem, ficamos com os olhos em bico.

Primeiro foram os restaurantes, que pulularam por tudo quanto é sítio e nos deram a provar; “clépe chinês”, “clépe xelado”, “alôs blanco” (ou xau xau), “massa dalôs cumgambachs”, “ananás flesco cumgambachs”, “pato àpekim”, entre algas do mar e rebentos de cana.

Da mesma forma que acreditamos que qualquer terrinha tem sempre o seu Café Central e que, ao conduzirmos de noite, existe sempre estrada à nossa frente, também somos levados a crer que qualquer cidade deste país, aberto à multiculturalidade, à integração e ao comércio internacional, tem também o seu “el corte chinês” (passe a publicidade).
São corredores e mais corredores, salas e recantos labirínticos, cruzamentos e entroncamentos de prateleiras repletas de cima abaixo de artigos variados e coloridos, que nos confundem na escolha e nos obrigam a esbarrar, quase sempre, contra uma inutilidade qualquer que está longe de nos fazer falta.

Que felicidade a nossa. Nossas Senhoras de Fátima fosforescentes, flores de plásticos sempre frescas, golfinhos em vidro transparente e outros animais da quinta, camisolas do Ronaldo (na versão CR7 e CR9), quadros com ”mariposas mumificadas”, guarda-chuvas, guarda-sóis, barretes de lã e dos outros, lingerie e babydolls para embeiçar os tolinhos, bandeiras de Portugal (com castelos às avessas), coletes reflectores em laranja e verde eléctricos, coisas de uso da casa, vasos, vasinhos e potes, tudo a preço de saldo, pilhas e baterias, telas esticadas à pressa, velas de todas as cores e cheiros (pergunte se têm de urtiga branca, ou de figueira-do-inferno) colheres de trolha e níveis, com bolha ou a laser, espanadores pró pó, (que deviam chamar-se “espanhadores”), enfim, artigos de “roupa e lar”, sempre ao melhor preço, sempre a preço de saldo. Que felicidade a nossa.

Um amigo do meu Amigo, que é cultor do bom gosto, entra sempre, pelo Natal, numa espécie de saudável competição, onde a troca de presentes entre a família mais chegada, prima curiosamente, pelo, mau gosto. Como, perguntais vossas mercês? Simples, cada um tenta surpreender o outro com a peça mais “pirosa” encontrada na loja do chinês, o que, refira-se, não é fácil, dada a quantidade e qualidade da
oferta.

E dessa forma, lá se vão surpreendendo uns aos outros. Com aquele álbum fotográfico encapado a pêlo violeta, que fica bem com a coberta da cama, o par de golfinhos azul-celeste envoltos no seu namoro aquático em contorcidas ondas de vidro que as empregadas da casa desejam partir sempre que lhe limpam o pó, bichos de pelúcia laranja e fuschia, maiores que o King Kong, canecas pró pequeno-almoço, que nos deixam sem apetite, porta-fotos esquisitos que nos cercam a cara de flores de lótus, porta-chaves estúpidos que nos furam os bolsos das calças e um sem número de pequenas pérolas do mais profundo mau gosto.

Mas eles sabem fazer bem. Devemos-lhe as palavras sábias do Confúcio, a invenção do vidro, do papel, ou da pólvora, coisas simples como a normalização da distância entre o eixo das carroças, para manter os trilhos transitáveis, enfim, deram-nos cartas.

Feriado ou dia santo, para o chinês isso “é tinto”, por isso, os “biblot-dependentes” e os “enrrascados crónicos”, podem sempre contar com o seu robótico “obligadô” na entrega do talão. (espera lá, preciso de sacos pró lixo e de uma coleira pró cão…)

A Adriana “partimpim” Calcanhoto, lá vai “refrando” na sua canção, que “chinês, só como uma vez por mês”.
Discordo, acho que são duas.