quinta-feira, 23 de junho de 2011

A PEN E A NAVALHA




Homem que prezasse sê-lo, só saía à rua com a navalha no bolso.

Era uma espécie de nudez, uma exposição aviltante misturada com um ligeiro arrepio, meter a mão ao bolso e não sentir o toque frio da “arma”. Sim, era uma arma, de mil-funções, que os suíços (espertos) souberam tornar num objecto de prestidigitador, tal a quantidade de pequenas soluções escondidas (sabe-se lá onde).


Mas, como ia dizendo, a navalha era, porventura, o único adorno pessoal usado pelos homens duros do campo. Nada de anéis, pulseiras ou outras mariquices avulsas, que só serviam para atrapalhar, ao contrário da navalha - bem entendido - que servia para quase tudo. Nem mesmo a “santinha” protectora, que os mais devotos traziam consigo, fazia tantos milagres como um bom canivete de folha curta mansamente afiado.


Pela importância que lhe davam, uma navalha não era coisa que se emprestasse, por isso raramente se pedia (a desculpa mais comum é que podiam estragar-lhe o “fio”). Era com ela que tiravam os lombinhos às sardinhas assadas à pressa na fogueira de vides da meia-laranja, e era também com ela que “afinavam” as canas para enlear o feijão-verde, que raspavam a casca ao queijo seco de Estremoz, cortavam as “goelas” às galinhas, ajeitavam as rolhas dos barris, limpavam o “esterco” das unhas ou palitavam os dentes (ou o que restava deles).


A navalha, convenhamos, era como “cavalo na guerra”, sem ela a batalha estava perdida. Mas, em época de vindimas e para os "espertinhos", havia sempre as sobressalentes que, à cautela, eram levadas a mais para quem, fingidamente, se escudasse no facto de não a trazer consigo.

Recordo, à distância dos anos, o esmero e a satisfação com que o meu falecido avô Jerónimo descarnava, junto à panela do jantar, com a ponta da navalha da enxertia, o osso de porco cozido, num ritual lento e ensaiado que culminava quando o velhote sorvia ruidosamente o tutano do seu interior. A minha avó Esperança não gostava de o ouvir, parecia-lhe um "som do corpo" e barafustava por isso, e o cão deles, que me vira crescer, também não. Desse osso, sobrava pouco ou nada, mas era lindo ver o bicho, sofregamente, a tentar descobrir a melhor posição para atacar o que restava do dito. Coisas…


O tempo passou, o meu avô Jerónimo faleceu e com ele finou-se ela também, passados pouco mais de 7 meses. Da minha doce avó Esperança, da qual, na família, já não se guarda apelido porque às suas 3 filhas haveriam de dar o nome de marido, nenhum dos meus (muitos) primos se apelida de Luzeira.


Dependurada na ponta do “fiel de navalha”, escondida entre o corpete e o simbólico alcaxe, a dita fazia parte da farda e era com ela, que os marujos da Armada, embarcados (ou em terra) reparavam os “cabos” de amarração dos navios. Não foi assim há tanto tempo que se deixou de dar a devida importância a este objecto do quotidiano, mas foi há tempo suficiente para transferirmos o imaginário da navalha, como objecto individual transportável, para a sofisticada pen, que nas suas múltiplas capacidades em “gigabaites” armazenam uma “parga de zeros e uns” , que é o mesmo que dizer, que é uma “carrada” de fotografias da malta na praia ou mesmo livros completos, tipo “Os Maias”.


Atrevo-me a afiançar, que um indivíduo jovem, de “raça contemporânea”, jamais sairá à rua sem a sua pen no bolso, não vá este ter de “comprar” o último “Mortal Kombat 9” ao seu amigo “vidrinhos” (que passa horas a “sacar”) e não o poder fazer.
Por falar nisso e para não ser surpreendido (sim, que eu sou previdente), passo ao de leve a mão pela ganga e verifico que a minha estimada pen está lá. Um pouco mais pequena (bem sei) do que a do gabarola do meu amigo Cajó, que apresenta uma “tatuagem”, do género 20MB. A minha está, invariavelmente em repouso, virada sempre para o mesmo lado, aconchegada junto ao forro esquerdo do bolso das calças.


Um homem sem pen, não é homem, nem é nada!

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

O “TRINTA VENENOS”









Não havia poça de água, deixada pela chuva, que ele não quisesse tapar com as botas.

A bata que vestia para a escola - que há 1 segundo atrás era branca – ficava minada de pingentes de lama castanha que eram prenúncio de uma saraivada de estaladas, com que a mãe, cansada de tanto avisar, o haveria de premiar, logo que chegasse a casa.
Mas o “trinta venenos”, comia e calava. Já estava habituado…e a mãe também. O pai perdera-o poucos anos depois de o ter conhecido, e só Deus sabe a falte que ele lhe fez.

No trajecto, a caminho da escola, Berto arranjava sempre maneira de chegar atrasado. Não é que saísse tarde de casa, porque a mãe cautelosa, sempre o acordava a horas decentes para se ajeitar para a escola. Mal acordado, comia à pressa, quase sempre o mesmo, pegava na mala e zarpava.

Já na sala, lembrava-se vagamente de ter passado pela casa de banho, que à época, era pouco mais do que o sombrio espaço onde se expunha uma sanita solitária que recebia os líquidos orgânicos da noite, trazidos no bacio de plástico, que em bebé se lhe colava às nádegas gordas, desenhando na perfeição, um circulo perfeito. Não se recorda se lavava os dentes, (modernices) e mesmo a cara, a ver pelas ramelas que lhe caem, verdinhas, sobre o caderno da redacção, provam-lhe que a água da torneira da “pinta azul”, nem lhe passou pela fronte.

No Inverno, as poças que tanto o atraíam, gelavam e nessa altura Berto baixava-se pegava com jeito naquela espécie de vidro líquido e olhava-o com admiração, tentando perceber o fenómeno nocturno que tinha deixado a água congelada e a terra polvilhada com um fino manto branco.

O trajecto era uma doce aventura. Não tanto a ida, mas mais o regresso da escola. Mesmo o que não se mexia, como os torrões da borda da estrada, eram pontapeados com requintes de ponta de lança, descarnando as biqueiras das únicas botas que alguma vez tivera, deixando no ar um prolongado “gooooooooolo” e o som oco da terra a desfazer-se em mil grãos.

Característico deste pequeno amigo, eram as “duas velas” esverdeadas que lhe pendiam das narinas sempre que o frio entrava pela pouca roupa que frequentemente trazia vestida. As ditas, subiam e desciam até ao lábio, formando dois pequenos pilares de jade translúcido e, sempre que estas se aproximavam perigosamente do “beiço”, Berto inspirava instintivamente, fazendo ambas desaparecer como num passe de mágica. De tantas vezes fazerem o percurso ascensorial, as ditas velas, misturadas com o pó do caminho, pareciam-me agora castanho-esverdiados.

A bata, que estava longe de ser imaculadamente branca ou limpa, apresentava quase sempre mais casas que botões, o que o forçava, ao abotoar, a alterar a lógica estabelecida, parecendo que a mesma tinha sido costurada para um “corcunda das costas”. E mesmo aquela espécie de presilha, que decorava a parte de trás da bata - que ainda hoje questiono para que raio servia – tinha dificuldade em manter-se cosida.
Digamos que ao Berto nunca haveria de calhar um prémio pelo atavio, nem qualquer outro prémio escolar, embora fosse o mais premiado de todos nós, pelas vezes sem conta com que esticava as mãos ao castigo. Numa coisa ele era o maior, apesar da fraca-figura, tratava-se da forma estóica com que aguentava a bravura da régua de encontro às pequenas mãos, ao contrário do calmeirão “burro-da-escola”, que fungava sempre que o pequeno ditador da sala o chamava ao quadro de ardósia. A sua cabeça, quase adulta, servia de badalo e, volta e meia, accionada pelo braço-relâmpago do professor, embatia na lisura da pedra negra, que imediatamente a repelia, fazendo do pescoço gordo do Quinzão a mola recuperadora da sua redonda cabeça. Se o Prof. Seles estivesse bem disposto, coisa rara num cinquentão empedernido, o grandão haveria de sair apenas choroso e não humilhado. Para afastar os demónios de infância, Quinzão alistou-se na Polícia.

Voltemos ao Berto, grande peça de artilharia costeira, grande amigo de infância, pobre rapaz feito homem, perdido nos seus pequenos pecados, lembrado como um dos que cresceu com a infância hipotecada pela madrugadora morte do pai, apanhado nas teias do trabalho precário e das drogas que o tornaram num ser transparente e pouco acreditado.

Precocemente envelhecido, este herói dos tempos de escola, sempre de bata desalinhada, continua perfilado à direita e à frente, naquela velha fotografia de grupo, carcomida pela luz dos tempos onde, incompreensivelmente o autocrático professor, fez questão de não aparecer.

Afinal o “trinta venenos” não era mau rapaz.

domingo, 5 de setembro de 2010

LOJA DO CHINÊS












De tanta coisa que tem, ficamos com os olhos em bico.

Primeiro foram os restaurantes, que pulularam por tudo quanto é sítio e nos deram a provar; “clépe chinês”, “clépe xelado”, “alôs blanco” (ou xau xau), “massa dalôs cumgambachs”, “ananás flesco cumgambachs”, “pato àpekim”, entre algas do mar e rebentos de cana.

Da mesma forma que acreditamos que qualquer terrinha tem sempre o seu Café Central e que, ao conduzirmos de noite, existe sempre estrada à nossa frente, também somos levados a crer que qualquer cidade deste país, aberto à multiculturalidade, à integração e ao comércio internacional, tem também o seu “el corte chinês” (passe a publicidade).
São corredores e mais corredores, salas e recantos labirínticos, cruzamentos e entroncamentos de prateleiras repletas de cima abaixo de artigos variados e coloridos, que nos confundem na escolha e nos obrigam a esbarrar, quase sempre, contra uma inutilidade qualquer que está longe de nos fazer falta.

Que felicidade a nossa. Nossas Senhoras de Fátima fosforescentes, flores de plásticos sempre frescas, golfinhos em vidro transparente e outros animais da quinta, camisolas do Ronaldo (na versão CR7 e CR9), quadros com ”mariposas mumificadas”, guarda-chuvas, guarda-sóis, barretes de lã e dos outros, lingerie e babydolls para embeiçar os tolinhos, bandeiras de Portugal (com castelos às avessas), coletes reflectores em laranja e verde eléctricos, coisas de uso da casa, vasos, vasinhos e potes, tudo a preço de saldo, pilhas e baterias, telas esticadas à pressa, velas de todas as cores e cheiros (pergunte se têm de urtiga branca, ou de figueira-do-inferno) colheres de trolha e níveis, com bolha ou a laser, espanadores pró pó, (que deviam chamar-se “espanhadores”), enfim, artigos de “roupa e lar”, sempre ao melhor preço, sempre a preço de saldo. Que felicidade a nossa.

Um amigo do meu Amigo, que é cultor do bom gosto, entra sempre, pelo Natal, numa espécie de saudável competição, onde a troca de presentes entre a família mais chegada, prima curiosamente, pelo, mau gosto. Como, perguntais vossas mercês? Simples, cada um tenta surpreender o outro com a peça mais “pirosa” encontrada na loja do chinês, o que, refira-se, não é fácil, dada a quantidade e qualidade da
oferta.

E dessa forma, lá se vão surpreendendo uns aos outros. Com aquele álbum fotográfico encapado a pêlo violeta, que fica bem com a coberta da cama, o par de golfinhos azul-celeste envoltos no seu namoro aquático em contorcidas ondas de vidro que as empregadas da casa desejam partir sempre que lhe limpam o pó, bichos de pelúcia laranja e fuschia, maiores que o King Kong, canecas pró pequeno-almoço, que nos deixam sem apetite, porta-fotos esquisitos que nos cercam a cara de flores de lótus, porta-chaves estúpidos que nos furam os bolsos das calças e um sem número de pequenas pérolas do mais profundo mau gosto.

Mas eles sabem fazer bem. Devemos-lhe as palavras sábias do Confúcio, a invenção do vidro, do papel, ou da pólvora, coisas simples como a normalização da distância entre o eixo das carroças, para manter os trilhos transitáveis, enfim, deram-nos cartas.

Feriado ou dia santo, para o chinês isso “é tinto”, por isso, os “biblot-dependentes” e os “enrrascados crónicos”, podem sempre contar com o seu robótico “obligadô” na entrega do talão. (espera lá, preciso de sacos pró lixo e de uma coleira pró cão…)

A Adriana “partimpim” Calcanhoto, lá vai “refrando” na sua canção, que “chinês, só como uma vez por mês”.
Discordo, acho que são duas.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O MEU MELHOR AMIGO




Às vezes estamos longe e cansados e pensamos tanto nele, mas tanto mesmo, em particular naquelas tardes de verão, depois de almoço, em que o “catalão” e a cebola crua da salada nos aflora à boca na forma sonora de uma vuvuzela, para não falar no indigesto pepino às rodelas, que dávamos tudo para o ter por perto.
Quando as pálpebras, obedecendo à lei da gravidade dos corpos, que os atrai para baixo, se tornam pesadas; ansiamos tanto, mas tanto mesmo, deitarmo-nos sobre ele e languidamente dormir nos seus braços que somos incapazes de pensar direito.

A não ser o facto de termos a nossa sexualidade há muito resolvida, referirmo-nos assim a “ele”, sem explicação prévia, obriga-nos, por força de algum equívoco ou pensamento perverso, a ser claros. Por isso, aqui se afirma peremptoriamente que este, de quem lhes falo, é o meu sofá!

Um sofá é o condomínio privado onde só nós cabemos, é uma espécie de colo maternal que incondicionalmente nos acolhe, é um porta-aviões estratégico no meio de nosso oceano de cansaço. Um sofá é tudo, por isso não existe sala que não o tenha, omnipresente, virado à tv, ao lado do janelão, bem próximo da lareira, do sistema surround e da mesa baixa, que fica mesmo a jeito para pousarmos o copo do uísque (e os pés também).

Não damos, aos sofás, a importância que nos merecem. Muitos deles, fazem indelevelmente parte da família e deviam ser fotografados e integrados no álbum de fotos do bebé, porque, (como os pais sabem…não é), fora no aconchego das suas molas que tudo aconteceu.
Do sofá, conduzimos a nossa equipa sempre à vitória e condenamos aquela espécie de treinador que lá puseram que, teimosamente joga no 4-3-3 e substitui quase sempre o ponta-de-lança por um defesa (assim não vamos lá…).

É de glúteos sentados nele (ups!!) que as “mádamas” vêem a telenovela das nove, torcendo pela coitadinha da Mariana, que caiu do cavalo e pelo sucesso do namoro do “galã da estação” com a “boa” da protagonista, cujo guião os envolve, vezes sem conta, em húmidos “beijos técnicos”.
Enfim, o sofá retempera-nos, pese embora o facto de uns maluquinhos pela ginástica nos tentarem vender a ideia de que, em vez de descansar o esqueleto no dito deveríamos estar a correr, patéticos, sobre uma passadeira estúpida, ou a pular e a descer freneticamente de um banco ao som do funky, em ambiente com ar condicionado… claro.

Por isso não o troco pelo “novinho em folha”, cheio de estética e design, igualzinho aos das revistas, que tenho sob a fotografia do meu avô Silvestre na sala grande. Sou, por exclusão de partes, levado a pensar, que quem o construiu é contra o descanso. Só pode.

E agora “desculpem qualquer coisinha”, vou-me retirar. Sem precisar de pijama, que é peça vitoriana e fora de moda, deito-me assim mesmo sobre ele, afago-lhe os “braços”, ajeito as espáduas e os glúteos contra a sua pele macia e em completo abandono, deixo-me enlevar na espuma densa do seu estofo de musculado cabedal (verde) e espero que, depois do sono retemperador, uma fada-madrinha me acorde, suavemente, roçando no meu rosto as sedas esvoaçantes do seu vestido.

Mas, como isso é pouco provável, por só acontecer nos “livros de cordel”, o mais certo é ser uma mosca “regateira”, chamada pelo ronco surdo do meu ressono a pousar-me insistentemente na ponta do nariz… ai se te apanho!

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

CÃES COM PULGAS


Embora o meu vizinho assim lhe tenha posto, Matateu não é nome que se dê a um cão.

Em miúdos, todos desejamos ter um cão. Nada de gatos, que isso é felino fingido, que ronrona por entre as nossas pernas de cauda no ar, mostrando as “bolas”. Animal de “estimação” para ter como companhia, é um cão, macho de preferência e que ladre aos estranhos e sempre que batem no portão. Quanto a isso estamos falados.

Se Matateu, velha glória do futebol Belenenses, porque não dizer de “todos os tempos”, não era nome que (honestamente) se desse a um rafeiro, também “Errol Flynn” , directa homenagem ao galã de Hollywood, conhecido pelo seu papel de “Robin dos Bosques”, seria de ponderar até porque, o homem que arrasava corações, escondido naquele “bigodinho fino” de sedutor da época, teria sido bissexual, o que a ser verdade colocava em causa a sexualidade do bicho.

Não era difícil encontrar, entre estes fiéis e simpáticos animais, alguns que pela agilidade e perspicácia do olhar, nos haveriam sempre de surpreender. Pulavam cercas, seguravam bolas, levavam nos dentes as chaves de casa ou o saco do pão, sempre com compenetrada postura. Defendiam-nos dos outros cães e até daquele imbecil “burro da escola”que nos batia cobardemente, usando para nos intimidar o corpanzil gordurento criado à base de batata cozida.

No tempo em que os cães eram “mestiços”, de “cruzas” várias, que escolhiam (e fecundavam) as parceiras em plena rua, por muitas haver ao “galdério”, pouco pedigree havia. Não existia essa coisa do apartheid canino, da raça, da “marca”. Contudo, dessa mestiçagem, dessa roleta russa de genes, apareciam ninhadas de criaturas lindas.

Em tempos, tantos havia ao abandono pelas ruas, que a Câmara pelo perigo que ofereciam, tinha redes para os apanhar. Embora muitos tivessem “dono”, poucos tinham coleira e eram livres de deambular por todo o sítio. Os mais afoitos afastavam-se tanto que se “perdiam”, outros arriscavam zonas perigosas de trânsito traiçoeiro
“Sol” era o nome de um cão de caça, arguto e habilidoso entre as silvas, “Lira” o de uma cadela “maricas”, frágil e protegida, “Daktary” o cão que herdara o nome da série de televisão que tinha um zoo como cenário, tal como “Skip” em que o protagonista era um saltitante canguru. Mas havia o “Farrusco” e o “Pirussas” de pelagem curta cor de cinza, o “Pantufa” grande e desconcertante no seu corpo juvenil de labrador, o “Putchy”, de raça estranha, que embora liliputiano, parecia maior porque o pêlo farto que lhe deixaram crescer no lombo o fazia duplicar de tamanho, da “Pandora”, a boxer de olhos grandes e perscrutantes, musculada, elegante e silenciosa que se babava por tudo e por nada, para não falar do “Vai-te a ele” que “arreganhava os dentes” e uivava sempre que o atazanavam.

Hoje todos sabemos muito de raças e conseguimos visualizar o perfil do bicho. Se nos falam de um pastor alemão, lembramo-nos logo do “Max” (réplica fanhosa do “Rex”), aos “cheios de pintas”, chamamos dálmatas, porque nos recordam o filme e a maléfica Cruela, ao cachorro do “scotex”, irrompendo pelo corredor, envolto em papel higiénico, chamamos sem vacilar, labrador. E conhecemos também os basset, semelhantes a salsichas rastejantes, de orelhas a "arrojar" p'lo chão e olhos mortiços, inconfundíveis pela sua indolência, e por ai adiante, sendo que, a máxima popular, que “cão que ladra não morde”, deve ser analisada caso a caso e avaliada em função da compleição do canino e da distância dos afiados incisivos às nossas estimadas calças, até lá, e para nossa segurança, devemos manter as canelas à defesa.

domingo, 8 de agosto de 2010

CASAR COM QUEM AMAR

O casamento, antigamente, era um assunto sério. Hoje também se crê que seja.

Por via das “modernices”, que obrigam as políticas das nações a ajustar-se à “nova realidade social”, esta questão apresenta-se-nos, agora, um tanto ou quanto confusa.
Digamos que casar, já não é (só) aquele acto simbólico entre géneros diferentes, em que ele veste de escuro com gravata estampada a dar com o lenço e ela de vestido branco de “cauda”, com indeléveis ramagens “champagne”, belíssima e perfumada, de boquet de flores naturais, iguais às que lhe decoram a tiara que lhe prende o véu. Por debaixo do vestido justo, que lhe denuncia as formas, veste um conjunto de duas reduzidas peças – inversamente proporcionais ao preço - todo em “vermelho cerise”, com que há-de incendiar o nubente. (força rapaz…)

Hoje, não nos devemos surpreender se virmos um “casamento” diferente, daqueles onde aparecerem duas noivas perante o oficiante, ou onde não se vê noiva a acompanhar o noivo. Desculpem se estamos a trocar os pares, pois como pode muito bem acontecer, a partir de agora, tanto pode aparecer ele com ela, ele com ele ou ela com a outra, mas, a não ser que façam novo acordo ortográfico, o conceito de noivo e de noiva está perfeitamente enraizado na nossa cultura e vai levar mais tempo a adaptar do que a transição do escudo pró euro.

Mas como as sociedades tendem a adaptar-se às novas realidades… e a felicidade está no ar… como dizia o Solnado, “façam o favor de ser felizes”, cada um à sua maneira, bem entendido.
Mas, visto que não são questões de género o que aqui nos trás, mas sim de “verdadeiros casamentos”, daqueles que serviam de pretexto para juntar as famílias de ambos os lados e amigos próximos, à volta da mesa, partilhando da felicidades dos noivos e os prazeres da gula, diríamos que, noutros tempos, os casamentos eram um festim que durava 3 dias, sendo que um deles era, efectivamente, dedicado à cerimónia que, para os “lambões”, erao que menos interessava.

Tudo começava pelo convite. E não estamos a falar de papel impresso a ouro com os clássicos anéis entrelaçados sob o monograma em cursivo francês, falamos de convites na forma de pires de arroz-doce, decorados à mão com canela em pó, pelas mães e tias mais caprichosas. Do clássico desenho de linhas paralelas, formando losangos, aos círculos, marcados com o fundo de um copo, arriscavam ainda desenhar flores simples com uma ou outra pétala. Aceitar o arroz-doce, em prato de faiança ou no futurista “pirex” era comprometer-se, passados alguns meses, a partilhar a felicidade do casal (que, ao que dizem as más-línguas, já tirou as medidas a uns lençóis).


Para memória futura, do feliz enlace, haverá de constar a “fotografia do conjunto”. Noivos ao centro, pais e padrinhos imediatamente a seguir, avós também por perto, bisavós (se os houver), e demais convivas, assim dispostos na escadaria, com os putos a atazanar os pais que se esforçam para manter a compostura e o vinco dos fatos. Pior que os “cachopos” a estragar a biqueira dos sapatos (novos) na performance das suas intermináveis “birras”, só mesmo o “chato” do fotógrafo que teima em encenar aquilo a que ele próprio chama de reportagem, obrigando todos, ao seu sinal… a sorrirem.

E ala, que se faz tarde, porque o senhor padre, como sempre, se “esticou” no discurso e nos conselhos aos pombinhos e nós ali, aguentando estoicamente, com sede e fome, desejosos de ouvir o “ide em paz”. É altura de seguir para o local da boda, desapertar os laços e deixar os corpos, pouco dados a tamanho atavio, voltarem, como qualquer rio, ao seu leito natural.

A festa durará até que haja comida e a noiva comparecerá (mal dormida), como manda a regra, vestida com o “fato do segundo dia”, sorridente e feliz ainda com um “brilhozinho nos olhos”, ao que alguns “malandrecos” atribuem à noite bem passada.
O músico contratado para abrilhantar a festa, comia com a malta como se fosse da família e interrompia as “modas” sempre que os convivas davam “vivas” aos noivos, que por se sentirem agora, mais à vontade, não roborizavam com tanta frequência.

Quase tudo era confeccionado no local alugado para o efeito. Acordava-se com a cozinheira, alugava-se a palamenta, recolhiam-se estrados e bancos “corridos”, amanhavam-se as aves e outros animais de capoeira e confeccionavam-se os doces.

Por fim, cansados de tanta festa, lavava-se e arrumava-se tudo, entregava-se a chave do “salão”, pagava-se a quem se devia, devolvia-se as grades da “laranjada” e o que se pedira emprestado e esperava-se, que os noivos, que tinham a vida pela frente, fossem felizes para sempre…

sexta-feira, 30 de julho de 2010

XIÇA, QUE ISSO DÓI


Se havia coisa de que a maioria das crianças não gostava era de injecções, melhor dizendo, de agulhas. Vacinas então nem se fala.

Em tempos, como mandava a boa da educação sanitária e preventiva, nos idos anos 60, todas as crianças tinham de ser vacinadas, para dessa forma, evitar o tétano, a difteria, o sarampo, a varicela ou a tuberculose.

Estes inimigos invisíveis que era preciso combater, que estavam nos pregos ferrugentos ou na tosse dos doentes, eram mal compreendidos pelas crianças que, na ingenuidade dos seus verdes anos, acreditavam que - mal que não se vê, não existe.
No tempo em que Almeirim só tinha uma escola primária, havia uma espécie de posto de saúde, a que deram - e vá-se lá saber porque razão - o estranho nome de Dispensário. Era lá, que há muitos anos, se ministravam as vacinas.

Vinham as crianças, tristes “como cão por corda”, a pé e em fila, das antigas “Escolas Velhas” até ao dito Dispensário para se submeterem à terrível tortura da “vacina do aparo”, ou de outra qualquer com agulhas. Alguns, pelo caminho, armados em “fortes” tentavam esconder o nervosismo fazendo “macacadas” ao que o professor, quase sempre sem demora, tratava de reprimir a toque de “carolo” ou de estalo no “cachaço”.
Normalmente não havia aviso para o ritual, mas, se partíamos todos, era bastante provável que alguém da turma não chegasse ao destino. Valério, de agulhas não tinha medo, tinha PAVOR. Pelo percurso haveria de arranjar, quase sempre, uma solução para não ser picado e com essa sua façanha, livrar-nos de ver a triste figura que sempre fazia, gritando desalmadamente em frente às seringas, mesmo que o clássico cartaz, aquele nosso conhecido, que perdurou por muito tempo nas enfermarias, representando uma enfermeira de dedo indicador sobre os lábios exigindo “SILÊNCIO”, estivesse “espetado”, ali mesmo, à sua frente.

Nada o fazia calar. Começava a berrar antes mesmo de ver as latas de inox contendo as apetrechos e só terminava a berraria quando lhe soltavam o braço. Mas, no meio desta acção profilática, que excelentes resultados parece ter dado – a ver pela malta que por aqui se conserva – havia uma pequeno equipamento, talvez de inox, que nos deixava a pensar. Tratava-se de uma bacia, elevada à altura da cintura por uma coluna cilíndrica do mesmo material, rematada por uma base arredondada de onde saia um pedal que accionava a tampa. Ali, à vista de todos, “certos alguns”, calcavam no pedal, quase sempre com alguma parcimónia e num ”arranque, falando em sintaxe de halterofilia, puxavam os resquícios do suco gástrico (ou sei lá o que fosse) às paredes do esófago ou às fossas nasais e lançavam-no, sem complexos, naquela coisa inominável, deixando muitas vezes uma espécie de teia de aranha fina de muco entre “aquilo” e a boca. Aquela coisa diabólica era um “escarrador”.

Estas verdadeiras peças de museu já não existem, felizmente, mas infelizmente ainda perduram algumas “aventesmas”, que carregam no ADN informação pré-histórica e por essa razão, ainda cospem para o chão.

Depois de picados, éramos reunidos cá fora, junto aos buxos que ladeavam a entrada, mas nesta altura, já a bata branca estava abotoada e o coração tinha voltado ao seu ritmo normal. A caderneta das vacinas levava um carimbo, tornando-se numa espécie de passaporte que nos garantia a imunidade “bactero-viral”, e uma data escrita à mão, que, para a maioria de nós, queria dizer que só lá voltávamos se nos obrigassem.

Do Valério perdeu-se o rasto. Por essa razão não sabemos se já enfrenta as injecções com valentia ou se ainda foge do estucador ou do padeiro porque se vestem de branco. O que se sabe é que o Dispensário foi demolido e com ele desapareceram os “escarradores”.