quinta-feira, 23 de junho de 2011

A PEN E A NAVALHA




Homem que prezasse sê-lo, só saía à rua com a navalha no bolso.

Era uma espécie de nudez, uma exposição aviltante misturada com um ligeiro arrepio, meter a mão ao bolso e não sentir o toque frio da “arma”. Sim, era uma arma, de mil-funções, que os suíços (espertos) souberam tornar num objecto de prestidigitador, tal a quantidade de pequenas soluções escondidas (sabe-se lá onde).


Mas, como ia dizendo, a navalha era, porventura, o único adorno pessoal usado pelos homens duros do campo. Nada de anéis, pulseiras ou outras mariquices avulsas, que só serviam para atrapalhar, ao contrário da navalha - bem entendido - que servia para quase tudo. Nem mesmo a “santinha” protectora, que os mais devotos traziam consigo, fazia tantos milagres como um bom canivete de folha curta mansamente afiado.


Pela importância que lhe davam, uma navalha não era coisa que se emprestasse, por isso raramente se pedia (a desculpa mais comum é que podiam estragar-lhe o “fio”). Era com ela que tiravam os lombinhos às sardinhas assadas à pressa na fogueira de vides da meia-laranja, e era também com ela que “afinavam” as canas para enlear o feijão-verde, que raspavam a casca ao queijo seco de Estremoz, cortavam as “goelas” às galinhas, ajeitavam as rolhas dos barris, limpavam o “esterco” das unhas ou palitavam os dentes (ou o que restava deles).


A navalha, convenhamos, era como “cavalo na guerra”, sem ela a batalha estava perdida. Mas, em época de vindimas e para os "espertinhos", havia sempre as sobressalentes que, à cautela, eram levadas a mais para quem, fingidamente, se escudasse no facto de não a trazer consigo.

Recordo, à distância dos anos, o esmero e a satisfação com que o meu falecido avô Jerónimo descarnava, junto à panela do jantar, com a ponta da navalha da enxertia, o osso de porco cozido, num ritual lento e ensaiado que culminava quando o velhote sorvia ruidosamente o tutano do seu interior. A minha avó Esperança não gostava de o ouvir, parecia-lhe um "som do corpo" e barafustava por isso, e o cão deles, que me vira crescer, também não. Desse osso, sobrava pouco ou nada, mas era lindo ver o bicho, sofregamente, a tentar descobrir a melhor posição para atacar o que restava do dito. Coisas…


O tempo passou, o meu avô Jerónimo faleceu e com ele finou-se ela também, passados pouco mais de 7 meses. Da minha doce avó Esperança, da qual, na família, já não se guarda apelido porque às suas 3 filhas haveriam de dar o nome de marido, nenhum dos meus (muitos) primos se apelida de Luzeira.


Dependurada na ponta do “fiel de navalha”, escondida entre o corpete e o simbólico alcaxe, a dita fazia parte da farda e era com ela, que os marujos da Armada, embarcados (ou em terra) reparavam os “cabos” de amarração dos navios. Não foi assim há tanto tempo que se deixou de dar a devida importância a este objecto do quotidiano, mas foi há tempo suficiente para transferirmos o imaginário da navalha, como objecto individual transportável, para a sofisticada pen, que nas suas múltiplas capacidades em “gigabaites” armazenam uma “parga de zeros e uns” , que é o mesmo que dizer, que é uma “carrada” de fotografias da malta na praia ou mesmo livros completos, tipo “Os Maias”.


Atrevo-me a afiançar, que um indivíduo jovem, de “raça contemporânea”, jamais sairá à rua sem a sua pen no bolso, não vá este ter de “comprar” o último “Mortal Kombat 9” ao seu amigo “vidrinhos” (que passa horas a “sacar”) e não o poder fazer.
Por falar nisso e para não ser surpreendido (sim, que eu sou previdente), passo ao de leve a mão pela ganga e verifico que a minha estimada pen está lá. Um pouco mais pequena (bem sei) do que a do gabarola do meu amigo Cajó, que apresenta uma “tatuagem”, do género 20MB. A minha está, invariavelmente em repouso, virada sempre para o mesmo lado, aconchegada junto ao forro esquerdo do bolso das calças.


Um homem sem pen, não é homem, nem é nada!

2 comentários:

  1. Mas também ainda ha aqueles que usam a navalha num bolso e a pen no outro!

    Isso é que é um Homem prevenido ;)

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