sexta-feira, 30 de julho de 2010

XIÇA, QUE ISSO DÓI


Se havia coisa de que a maioria das crianças não gostava era de injecções, melhor dizendo, de agulhas. Vacinas então nem se fala.

Em tempos, como mandava a boa da educação sanitária e preventiva, nos idos anos 60, todas as crianças tinham de ser vacinadas, para dessa forma, evitar o tétano, a difteria, o sarampo, a varicela ou a tuberculose.

Estes inimigos invisíveis que era preciso combater, que estavam nos pregos ferrugentos ou na tosse dos doentes, eram mal compreendidos pelas crianças que, na ingenuidade dos seus verdes anos, acreditavam que - mal que não se vê, não existe.
No tempo em que Almeirim só tinha uma escola primária, havia uma espécie de posto de saúde, a que deram - e vá-se lá saber porque razão - o estranho nome de Dispensário. Era lá, que há muitos anos, se ministravam as vacinas.

Vinham as crianças, tristes “como cão por corda”, a pé e em fila, das antigas “Escolas Velhas” até ao dito Dispensário para se submeterem à terrível tortura da “vacina do aparo”, ou de outra qualquer com agulhas. Alguns, pelo caminho, armados em “fortes” tentavam esconder o nervosismo fazendo “macacadas” ao que o professor, quase sempre sem demora, tratava de reprimir a toque de “carolo” ou de estalo no “cachaço”.
Normalmente não havia aviso para o ritual, mas, se partíamos todos, era bastante provável que alguém da turma não chegasse ao destino. Valério, de agulhas não tinha medo, tinha PAVOR. Pelo percurso haveria de arranjar, quase sempre, uma solução para não ser picado e com essa sua façanha, livrar-nos de ver a triste figura que sempre fazia, gritando desalmadamente em frente às seringas, mesmo que o clássico cartaz, aquele nosso conhecido, que perdurou por muito tempo nas enfermarias, representando uma enfermeira de dedo indicador sobre os lábios exigindo “SILÊNCIO”, estivesse “espetado”, ali mesmo, à sua frente.

Nada o fazia calar. Começava a berrar antes mesmo de ver as latas de inox contendo as apetrechos e só terminava a berraria quando lhe soltavam o braço. Mas, no meio desta acção profilática, que excelentes resultados parece ter dado – a ver pela malta que por aqui se conserva – havia uma pequeno equipamento, talvez de inox, que nos deixava a pensar. Tratava-se de uma bacia, elevada à altura da cintura por uma coluna cilíndrica do mesmo material, rematada por uma base arredondada de onde saia um pedal que accionava a tampa. Ali, à vista de todos, “certos alguns”, calcavam no pedal, quase sempre com alguma parcimónia e num ”arranque, falando em sintaxe de halterofilia, puxavam os resquícios do suco gástrico (ou sei lá o que fosse) às paredes do esófago ou às fossas nasais e lançavam-no, sem complexos, naquela coisa inominável, deixando muitas vezes uma espécie de teia de aranha fina de muco entre “aquilo” e a boca. Aquela coisa diabólica era um “escarrador”.

Estas verdadeiras peças de museu já não existem, felizmente, mas infelizmente ainda perduram algumas “aventesmas”, que carregam no ADN informação pré-histórica e por essa razão, ainda cospem para o chão.

Depois de picados, éramos reunidos cá fora, junto aos buxos que ladeavam a entrada, mas nesta altura, já a bata branca estava abotoada e o coração tinha voltado ao seu ritmo normal. A caderneta das vacinas levava um carimbo, tornando-se numa espécie de passaporte que nos garantia a imunidade “bactero-viral”, e uma data escrita à mão, que, para a maioria de nós, queria dizer que só lá voltávamos se nos obrigassem.

Do Valério perdeu-se o rasto. Por essa razão não sabemos se já enfrenta as injecções com valentia ou se ainda foge do estucador ou do padeiro porque se vestem de branco. O que se sabe é que o Dispensário foi demolido e com ele desapareceram os “escarradores”.

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