sábado, 10 de julho de 2010

PAPAGAIOS DE PAPEL






Em miúdos, sem percebermos nada de aerodinâmica, conseguiamos pôr a voar um papagaio feito de papel e cana. Em adultos, a maior parte de nós, continua a questionar como é que aquelas pesadas máquinas voadoras, que cruzam os céus por cima de nós, carregadas de gente, de malas, de todas as cores e feitios, de correio que urge em chegar e de depósitos a abarrotar de combustível, puxados para baixo pela implacável força da gravidade, conseguem voar sem “dar às asas”.

O voo dos pássaros sempre fascinou as mentes mais inquietas, como a de Leonardo, por exemplo. Experimentar a sensação de liberdade das aves, olhar a paisagem em “picado”, ou migrar para outras paragens acompanhando a “maré” dos ventos, sempre foi desejo libertário do Homem, por isso meus amigos, quando os rapazes se juntavam para fazer os papagaios, havia ali uma inquietação que qualquer psicólogo explicaria facilmente. Quero acreditar que muito do voluntariado para as tropas aerotransportadas vem desse desejo recalcado, se bem que, saltar não é propriamente voar.

Passando ao que interessa. Para os construir eram necessários os materiais, as canas, o “cordel das chouriças”, a cola, feita com farinha de trigo amassada com água, e o papel. Convinha, antes de mais, escolher bem as canas, sendo que estas podiam encontrar-se ali, “à mão de semear”, ora como pau-da-roupa, como vara para caiar, ou ainda servindo de apoio ao enleante feijão verde da horta.
Retalhadas ao meio com cuidado, para a simetria se manter, era feita a cruzeta inicial, à qual se juntaria uma terceira cana, de igual tamanho que, bem apertada no eixo das duas, formava a estrutura rígida do papagaio em forma de estrela de 6 pontas. Havia agora que ligar as ditas, usando o mesmo cordel cor de areia, levemente encerado, que servia para atar a “tripa” dos enchidos.

Construindo o losango, com canas e cordel, estávamos prontos para iniciar a aplicação do papel comprado na mercearia de bairro, a mesma que vendia o petróleo e os sabões, as sêmeas para os animais, a alpista para os pássaros de gaiola, o “vinho ao garrafão”, os fósforos e os “mata-ratos”. A cor era escolhida pelo que havia em prateleira; azul, amarelo ou vermelho, sendo que, muitas das vezes se colavam duas folhas de cor diferente para dar estilo à máquina voadora.

Colar, com amido, obrigava a colocar a quantidade de água certa e a distribuí-la uniformemente com a ponta do dedo ao longo da badana deixada “a mais” em toda a volta, para aprisionar o cordel entre o papel. Era importante reforçar, junto ao eixo, com um círculo de papel mais encorpado, para que não se rompesse na zona onde se atava o fio principal. Outros dois pedaços de cordel, saídos das duas extremidades superiores, deviam ser atadas tendo em atenção a inclinação do conjunto lá no alto. Estava a esquecer a tesoura, usada com mil cuidados e emprestada com mil avisos, que por ser ferramenta de costureira e afiada com sabedoria pelo galego amolador, deveria ser devolvida quanto antes.
Com ela eram feitos os pormenores, ou seja, as franjas que decoravam os remates junto à extremidade das canas. Era giro ver aquilo a abanar com o vento. Dois ou três rolos de cordel enrolados em “oito” num pequeno pau de eucalipto, chegavam para ver aquele espectáculo colorido, afastar-se de nós a caminho dos céus. A distância, e a curva feita pelo cordel a caminho do eixo, desmaterializavam-no e confundiam-no com o céu, criando em nós a falsa ilusão de que “voava” sozinho.

Havia-os em formato de “bacalhau”, que ficava sempre bem com o seu “rabo” colorido, feito com pequenos trapos, atados espaçadamente. O tamanho desta cauda era testada e o equilíbrio da “aeronave” dependia do seu peso. Para lançar o papagaio bastavam duas pessoas, o que segurava e o que puxava, sendo que, a responsabilidade maior, cabia ao “piloto” que corria na pista esperando que, atrás de si, aquele espectáculo de papel colorido se elevasse descolando a cauda do solo a caminho do éter.

Com a chegada da maravilha da luz eléctrica, as ruas encheram-se de postes e “postaletes” e os “fios da luz” passaram a ser uma armadilha para a “aviação” de papel e cana.

Se uns viam com bons olhos o anunciado progresso, outros, crianças, com uma visão limitada do mundo, só não os cortavam porque não podiam. Por isso era frequente ver os despojos de algumas dessas máquinas, outrora objecto de orgulho e de disputa, a abanar no estendal dos fios da “Hidroeléctrica Alto-Alentejo”, enviando s.o.s. de resgate aos pilotos da eira.

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