terça-feira, 13 de julho de 2010

HOJE HÁ “COMÉDIAS”




Na pacatez das aldeias, ou em pequenas vilas como a nossa, os saltimbancos aportavam nos largos e nos cruzamentos mais francos e instalavam-se acreditando com eles ter chegado “o maior espectáculo do mundo”. Eram errantes como os gatos sem dono e apareciam para mostrar a espectacularidade das suas habilidades circenses. Para aumentar a expectativa e servir de “cartaz”, começavam por montar o “perigoso” trapézio. Duas verticais metálicas, uma barra horizontal, 3 pares de espias metálicas cravadas no saibro duro e uns quantos cabos esticados amparavam a periclitante estrutura que, exactamente no meio exibia um baloiço rematado a fio vermelho, o mesmo onde a estrela da companhia haveria de se exibir à luz frouxa da gambiarra.
Era importante criar empatias com os moradores, uma vez que o espectáculo e parte do seu dia-a-dia por estas paragens, dependia destes. Água e “luz”. Especialmente a última fundamental para a realização da performance, sem ela, no escuro da noite, as gastas lantejoulas do maillot da contorcionista não seriam vistos nem os olhos “arremelgados” daquele parente que há muito não via uma mulher jovem, assim exposta, em trajes menores.
A hora era esperada com ansiedade, pois não era todos os dias que havia “comédias”. O saguim, de pêlo dourado-esverdiado de olhos pequenos e vivazes, preso pela coleira, subia e descia as cordas enviesadas que sustinham o trapézio. A rapaziada ria-se das macacadas, mas não ousava tocar-lhe. Diziam que mordia como um cão e por isso ninguém queria experimentar, na pele, os dentes afiados do símio africano.
Estava na hora. As pessoas iam-se juntando por pequenos grupos, sendo que os mais novos, há muito que por ali estavam, tinham jantado à pressa, como faziam a maior partes das vezes, só que agora por outra razão que não a brincadeira de rua.
O fio que saia da loja do gaveto, trazia a luz emprestada. Estava tudo a postos. O círculo desenhado pelos espectadores à volta dos tapetes estendidos no chão, estava agora fechado, mas os seus anéis iam aumentando à medida que os retardatários, resmungando, que não valia a pena perder tempo pra ver aqueles pobretanas a fazer uns malabarismos, se colavam nas costas dos que a custo mantinham as suas posições.
Chegou o apresentador que, com voz firme, foi agradecendo a presença… que valia a pena esperar para ver os artistas que se preparavam para mostrar o que raramente se via por aquelas bandas. Pediam-se palmas e o público ofertava-as. Eis que se encaminhava, para o eixo do círculo, a jovem e maleável contorcionista que se rebolava no tapete, tentando fazer a “ponte” perfeita e, a custo, puxava a ponta da sapatilha para junto do nariz, dobrando a perna por cima da cabeça. Ouvia–se o peso do pequeno corpo a tocar o tapete e essa proximidade tornava a coisa mais real. Da corda formada pelas pessoas mais afastadas, seria impossível ver a rapariga que se esfalfava para mostrar o seu “número”.
Apareceram depois dois palhaços - uma trupe - como se diz em linguagem circense que, a custo, faziam saltar gargalhadas. Tocavam, não sei bem que instrumentos e com a sua música de cordel, saíram de cena tentando fazer um feedout sonoro que não funcionava.
Chegou a hora da trapezista, suspeito que a rapariga é a mesma que actuara no tapete, embora o “fato de banho”, outrora de cores vivas, fosse diferente, bem como o “apanhado" do cabelo.
Subia a pulso a corda que a levava ao balancé vermelho. Sentou-se e começou. Perna para dentro, braço para fora, sem mãos, dependurada pela concha das pernas ou suspensa apenas numa, lá ia a moça evoluindo, rematando as “avarias”, elevando o braço e rodando a mão aberta, como fazem as bailarinas indianas, dizendo… “oliopsssss”. Desceu e sumiu-se para fora do alcance das luzes.
Entrava agora uma anafada senhora, talvez a matriarca do grupo, que já não tinha pernas pró trapézio e em “fim de carreira” limitava-se a “bordar” recortes em papel de seda. Como se de magia se tratasse, a gasta senhora, que tentava com o excesso de pintura esconder o cansaço dos anos, de braços atrás das costas, para aumentar a dificuldade (e esconder o processo) ia, ao som de música articulando as pernas numa espécie de dança, ao mesmo tempo que talhava no papel, dobrado em triângulo, qualquer coisa para nos surpreender. Alguns minutos depois… eis senão quando, desdobrando o que houvera feito atrás das costas, e para espanto dos mais ingénuos, fazia aparecer, da tal folha de papel vermelho, uma “toalha bordada com mil recortes”, levando os parolos a questionar como teria ela conseguido, sem ver e sem tesoura, fazer coisa tão intrincada.
O público do anel exterior safava-se agora, de fininho, precisamente na altura em que se iniciava a colecta por entre o público. Os tais que tinham ido a custo, mas que se tinham mantido até ao fim, eram os pobres de espírito que se afastavam agora da justa mendicidade.
Tudo isso acabou, ficando apenas as memórias do tempo em que havia os “circos da 3ª Divisão”.

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