sexta-feira, 16 de julho de 2010

HARRE’MACHO!





Uma das maiores e mais trepidantes ruas de Almeirim, sempre foi a que homenageia o épico “mestre-escola de Sagres”, Infante Dom Henrique - que se lembrou, vejam só, de fazer uma escola naútica na ponta agreste onde nenhum barco poderia jamais aproar. Mas voltando à rua que de tanta trepidação, até enjoava, como o mar dos Algarves, verdadeira avenida de uma Almeirim pobre de alcatrão e rica de pó e buracos, era, pela particular razão de que fazia a ligação, em linha recta, entre o Depósito e o D. Manuel de Mello, bastante utilizada. Afinal, fora para isso que tinha sido atapetada a seixo rolado do melhor que se fabricava no mercado.

Nessa altura valorizava-se a arriscada profissão de construtores de poços. O risco era directamente proporcional à profundidade a que se faziam descer os anéis de tijolo e argamassa até às nascentes puras e frias a mais de sete metros de “fundura”. Havia-os bem mais fundos, com patamares intermédios, onde se colocavam motores a “tratol” que sugavam a custo, lá do fundo, o precioso líquido para alimentar as hortas dos quintais maiores.

Circulando a caminho do Pupo, pela dita “avenida”, sacudido pelo impulso dos amortecedores da sua velha motoreta, passou o Zé a caminho de casa, cansado de mais um dia de trabalho na “mina” da água de um quintal das Poupas.
Torcato, como sempre, brincava na rua, perdido no imaginário de quem tinha nascido com trissomia 21 e a quem eram desculpadas atitudes menos responsáveis. Parado junto à casa onde nascera brincava com uma espécie de chicote feito de uma verdasca seca de marmeleiro e uma corda mas, para rematar a ponta livre, atou-lhe uma etiqueta de madeira, daquelas que vinham a identificar as sacas das batatas holandesas.
Torcato viu o Zé passar-lhe pela frente, que distraidamente o cumprimentou, ao que este lhe respondeu arrefinfando-lhe uma bem assente vergastada nas costas. Assentou de tal maneira bem, no dorso do incauto motociclista, que o rectângulo da sua forma, ficou gravado na pele, por debaixo da camisa podendo com esforço, naturalmente, ler-se inclusive a marca das “batatas comboio”. No ar, embrulhado pela língua grande do mongolóide, ficou um arrastado arre’macho igual ao que tocava as bestas a caminho da charneca.
Ah, meu malandro! Agora dava cabo de ti… disse o pedreiro, desvairado pelo ardor que vinha do lombo das costas, semelhante a ferrão de vespa. Não lhe faças nada ó Zé, desculpa lá o rapaz, que ele, coitadinho, não têm culpa de ser “doente”, disse-lhe a Maria Galega que assistira a tudo.
Inconformado seguiu o seu caminho, mas agora sem apetite para a bucha da tarde, contudo a “vingança” não tardou a chegar. Passados uns tempos os dois encontraram-se, um para reconstruir um poço, que parecia pequeno para regar as hortaliças, o outro porque cirandava por perto. De pronto saiu a oferta, - Oh Torcato, queres ganhar uma navalha? Quero, disse o rapaz pouco convencido. - Ela está no fundo do poço, é nova e caiu lá para dentro agora mesmo. Como o pedreiro precisava de água para enrolar a areia e a cal hidráulica, diz-lhe sem piedade, tiras a água aqui para o tanque e depois de esgotado o poço, tiras a navalha. Contrato feito, o rapaz lá foi enchendo o tanque de apoio à horta que, os da casa, nos calores do Verão usavam como piscina. Cansado de tanta água tirar e não ver o fundo ao poço, nem tampouco a cor da navalha, Torcado desiste. As mãos cheias de bolhas, causadas pela corda áspera de sisal, seguiam agora a direcção dos bolsos. O tanque estava praticamente cheio e o Zé não precisava tão cedo que usar o balde e a roldana. A pequena vingança estava consumada e estavam agora quites.
Cada um seguiu o seu caminho, sendo que ao rapaz tudo haveria de parecer simples na sua ingenuidade que o seu corpo grande continha. José continuou, até que a saúde permitiu, abrindo poços a pulso, uma espécie de compulsiva "geofagia" que comunicava com os límpidos lençóis freáticos.
Hoje são máquinas perfuradoras que entubam o solo e trazem até à superfície o precioso líquido. Não seria possível com pá e roldana, tijolo e cadernais, descer tão fundo por isso, hoje, já não existem construtores de poços, nem hortas para alimentar famílias numerosas, nem “alcatruzes” para subir e descer nos poços, ao ritmo da burra que, a passo curto fazia rodar a “nora”. Hoje, com o milagre da água no cano, esquecemos o trabalho árduo e perigoso dos homens da terra que se aventuravam no interior da Terra.

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