sexta-feira, 30 de julho de 2010
XIÇA, QUE ISSO DÓI
Se havia coisa de que a maioria das crianças não gostava era de injecções, melhor dizendo, de agulhas. Vacinas então nem se fala.
Em tempos, como mandava a boa da educação sanitária e preventiva, nos idos anos 60, todas as crianças tinham de ser vacinadas, para dessa forma, evitar o tétano, a difteria, o sarampo, a varicela ou a tuberculose.
Estes inimigos invisíveis que era preciso combater, que estavam nos pregos ferrugentos ou na tosse dos doentes, eram mal compreendidos pelas crianças que, na ingenuidade dos seus verdes anos, acreditavam que - mal que não se vê, não existe.
No tempo em que Almeirim só tinha uma escola primária, havia uma espécie de posto de saúde, a que deram - e vá-se lá saber porque razão - o estranho nome de Dispensário. Era lá, que há muitos anos, se ministravam as vacinas.
Vinham as crianças, tristes “como cão por corda”, a pé e em fila, das antigas “Escolas Velhas” até ao dito Dispensário para se submeterem à terrível tortura da “vacina do aparo”, ou de outra qualquer com agulhas. Alguns, pelo caminho, armados em “fortes” tentavam esconder o nervosismo fazendo “macacadas” ao que o professor, quase sempre sem demora, tratava de reprimir a toque de “carolo” ou de estalo no “cachaço”.
Normalmente não havia aviso para o ritual, mas, se partíamos todos, era bastante provável que alguém da turma não chegasse ao destino. Valério, de agulhas não tinha medo, tinha PAVOR. Pelo percurso haveria de arranjar, quase sempre, uma solução para não ser picado e com essa sua façanha, livrar-nos de ver a triste figura que sempre fazia, gritando desalmadamente em frente às seringas, mesmo que o clássico cartaz, aquele nosso conhecido, que perdurou por muito tempo nas enfermarias, representando uma enfermeira de dedo indicador sobre os lábios exigindo “SILÊNCIO”, estivesse “espetado”, ali mesmo, à sua frente.
Nada o fazia calar. Começava a berrar antes mesmo de ver as latas de inox contendo as apetrechos e só terminava a berraria quando lhe soltavam o braço. Mas, no meio desta acção profilática, que excelentes resultados parece ter dado – a ver pela malta que por aqui se conserva – havia uma pequeno equipamento, talvez de inox, que nos deixava a pensar. Tratava-se de uma bacia, elevada à altura da cintura por uma coluna cilíndrica do mesmo material, rematada por uma base arredondada de onde saia um pedal que accionava a tampa. Ali, à vista de todos, “certos alguns”, calcavam no pedal, quase sempre com alguma parcimónia e num ”arranque, falando em sintaxe de halterofilia, puxavam os resquícios do suco gástrico (ou sei lá o que fosse) às paredes do esófago ou às fossas nasais e lançavam-no, sem complexos, naquela coisa inominável, deixando muitas vezes uma espécie de teia de aranha fina de muco entre “aquilo” e a boca. Aquela coisa diabólica era um “escarrador”.
Estas verdadeiras peças de museu já não existem, felizmente, mas infelizmente ainda perduram algumas “aventesmas”, que carregam no ADN informação pré-histórica e por essa razão, ainda cospem para o chão.
Depois de picados, éramos reunidos cá fora, junto aos buxos que ladeavam a entrada, mas nesta altura, já a bata branca estava abotoada e o coração tinha voltado ao seu ritmo normal. A caderneta das vacinas levava um carimbo, tornando-se numa espécie de passaporte que nos garantia a imunidade “bactero-viral”, e uma data escrita à mão, que, para a maioria de nós, queria dizer que só lá voltávamos se nos obrigassem.
Do Valério perdeu-se o rasto. Por essa razão não sabemos se já enfrenta as injecções com valentia ou se ainda foge do estucador ou do padeiro porque se vestem de branco. O que se sabe é que o Dispensário foi demolido e com ele desapareceram os “escarradores”.
quinta-feira, 29 de julho de 2010
TATUADO NO BRAÇO
Arrancados à pacatez do sítio onde nasceram, cresceram ou se fizeram homens e onde, por incondicional amor à terra, desejavam morrer, muitos foram os mobilizados para o “ultramar português”, com a obrigação de travar os “terroristas”.
Os relatos trazidos de lá não abonavam à tranquilidade e ao sono descansado, especialmente para os soldados que incorporavam os grupos de acção directa que combatia o “inimigo” na mata.
Das atrocidades da guerra, da solidão dos postos de vigia, dos “aerogramas” que não foram lidos, dos adultérios, dos estropiados, dos “cacimbados” e dos loucos, dos que viveram bem à custa dela, dos mortos e dos heróis, não vamos aqui falar.
Por isso, podemos falar da amizade e do companheirismo, dos laços fortes entre os homens que partilharam entre si a mesma condição e a mesma incerteza, jogando sem vontade, uma espécie de “roleta russa” com a morte.
Por assim dizer, “praça” que se prezasse trazia, marcado na pele, a tinta, e para sempre, uma recordação de sua passagem por África. Fazia parte do espírito gregário e de corpo, sentido nas “fileiras”, o qual, misturado com a saudade, davam para aquelas coisas.
Bastavam 3 agulhas - daquelas de coser roupa - apertadas em paus de fósforo, uma “carica” de cerveja “cuca”, que servirá de recipiente, tinta-da-china preta e tinhamos tudo o que era preciso. Não se conhecem grandes cuidados com desinfecções do material e facilmente acreditamos que uma esfregadela com “uísque de Sacavém” sanava qualquer enfermidade da epiderme. À destreza e sobriedade do “tatuador”, havia de corresponder a qualidade da obra.
Os Pára-quedistas tatuavam o brevet, os Fuzileiros da infantaria de Marinha, o “sabre envolta em 2 palmas”, os Comandos a sua insígnia envolta no grito “Mama Sume”, os outros, que tinham igual direito ao sentimento de pertença, as armas do seu batalhão e por ai a fora até ao “Angola 1961-1963”, ao coração estilizado envolvendo o “Amo-te Rosa, Moçambique -1968”, o vulgar “Guiné 25.03.1973”, o clássico “Amor de Mãe”, ou o clássico dos clássicos,"Sangue Suor e Lágrimas".
Muito depois de terminada a guerra colonial, se continuou a perpetuar sentimentos de pertença nas forças armadas, mas hoje dificilmente alguém deixa tatuar no braço esquerdo uma “gaja nua” ou um “Amo-te Querida”.
É porque, o que hoje é amor, amanhã pode ser rancor.
LOJAS DO BAIRRO
As mercearias estavam para as mulheres como as tabernas para os homens.
“Meia quarta” de café, 3 velas de sebo uma caixa de fósforos (das pequenas) e um vidro pró candeeiro. As mercearias de bairro, vulgarmente conhecidas por lojas, eram o ”entreposto comercial” mais próximo da nossa casa e mais distante, em aspecto e quantidade de géneros, do nosso conhecido super subalterno do hiper(mercado).
Floresciam nos gavetos mais importantes, marcando uma posição de assumida estratégia comercial. Muitas tinham acopladas tabernas, esses pequenos antros de perdição alcoólica, onde mulher respeitada não entrava. Na grande maioria dos casos as lojas eram suficientes, o dinheiro é que não, por isso era sempre a “assentar”.
O “avio” era feito ao sábado e "devia" de chegar para toda a semana. Já o “conduto” era comprado no mercado, onde se perfilavam os talhos, que, no tempo em que não havia moscas (nem ASAE), dependuravam à porta, as “peças” espetadas em grandes “anzóis” de inox. Excepção feita aos enchidos e ao frango, que se podiam comprar em algumas lojas, todas as outras carnes se compravam nos talhantes, ou na forma de animais vivos, porque também havia quem nesse tempo não tivesse aves de criação.
Compravam-se amendoins à “mão-cheia” e “chupas” de um só sabor, “bolacha baunilha a peso”, “álcool azul” para o fogareiro de “latão amarelo” e os ”espevitadores”, singela ferramenta de socorro que qualquer cozinha deveria ter.
Falemos em particular do amendoim torrado, que Baco não desprezaria por companhia por ser “marisco de taberna”, como o tremoço. Na competição entre amendoins, lá aparecia o “israelita”, maior que os da concorrência e por isso também, menos unidades por mão-cheia. Aceitava-se.
Nas lojas, onde o bacalhau se cortava em postas pequenas, para “dar para mais”, vendia-se também azeite de talhas de lata, sugado por bombas e petróleo “normal” para acender o carvão. Podia-se comprar envelopes à unidade e selos de igual maneira, colorau em “papeluços” cor de laranja e açúcar loiro em “cartuchos” de papel creme. Palmilhas para os sapatos, sabão azul a peso, embrulhado no jornal “O Século”, ganchos para o cabelo das meninas e “redes” para o carrapito das mulheres, e até pentes para os homens mais “opiniosos”, que o guardavam ciosamente no bolso das calças, ou entre a carteira atulhada de papéis, que usavam sem pejo, sempre que o vento descompunha as melenas.
Mas voltando às lojas, porque é delas que aqui se fala, estas eram uma espécie de “banco alimentar do fiado” onde se podia ficar a dever ao merceeiro, que é igual a dizer, “assente ai” no "livro dos cães”, que pago quando receber.
E assim se ia vivendo, nesta espécie de conivência baseado na “seriedade da pessoa”, isto no tempo em que ser honrado e sério era tido como um valor social em abundância. Mas, convém dizer que, sendo o povo analfabeto e pouco vivaz e o homem da loja pouco escrupuloso, sempre havia contas devedoras que, dentro do livro, se iam fecundando umas às outras aumentando a dívida e favorecendo o merceeiro, claro está.
Vendiam-se também esferográficas, que era coisa que ninguém oferecia - bic, escrita fina e bic normal – . Certo dia, respondendo a uma reclamação, de que a “caneta” não escrevia, abeirou-se ao balcão o velho merceeiro que aceitou sem demora trocar a dita por nova. Afastou-se no interior da loja, esfregou-a entre as mãos, para aquecer a tinta, riscou duas ou três vezes no papel da saca da “farinha para os pintos” e voltou. - Aqui está, novinha em folha. O cachopo agradeceu e saiu a correr.
Era assim que se enganavam os tolos.
quarta-feira, 28 de julho de 2010
BARBA E CABELO
Noutros tempos, na barbearia, podia-se cortar cabelos, desfazer barbas e arrancar dentes. Hoje, só se cortam cabelos e raramente se “fazem” barbas. Lêem-se umas novidades nas revistas “cor-de-rosa” amontoadas a um canto, quase todos os jornais desportivos, porque a clientela é eclética e clubisticamente sensível e, com sorte, recolhemos de viva voz, as cusquices mais frescas e mais improváveis que não se lêem nos jornais, trazidas por párias de “baixa pela Caixa” e reformados jovens (que é o contrário de jovens reformados).
Pela porta metálica de cortinas gastas, entram e saem estes pombos correios da coscuvilhice.
Zé, envolvido na bata branca que fazia questão de vestir, aberta à frente junto ao pescoço, afiava na tira de couro a navalha de lâmina reluzente com que havia de fazer os caldinhos. O seu desempenho dependia do “fio” que soubesse tirar do atrito com o “cabedal”. A barba rija dos “homens do campo”, mantida por fazer ao longo da semana, era ceifada, à primeira, deixando a cara lisa como rabinho de menino.
Duas palmadas no estofo verde, convidavam o Toino a sentar-se naquela cadeira maluca “marca Pessoa” que girava sempre que o mestre queria. Mestre Zé, que já tinha enfiado o apoio para a cabeça nos orifícios metálicos, inclinou o conjunto abrigando Toino a esticar o pescoço para trás e ajeitar os costados. Naquela posição em que oferecia o pescoço nu à navalha, Toino sentia-se desconfortável e para descontrair, respirou fundo e fincou as mãos no apoio dos braços. De costas para o “cliente” e preparando o caldo na pequena bacia de inox onde o pincel curto das “ensaboadelas” misturava sabão e água, Toino via-o reflectido no espelho enquanto este tentava fazer levedar a espuma branca do preparado. Pega-lhe no nariz com a ponta dos dedos, deixando-o a salvo da espuma que vai espalhando em movimentos circulares do pincel. De ambos os lados da cara, no pescoço, por debaixo do nariz, junto às patilhas de onde tira o excesso com a ponta dos dedos, mestre Zé estava pronto para passar ao ataque. A navalha deslizava em movimentos curtos e firmes, deixando a face sem espuma e sem pêlo. Com a ponta da toalha, limpou junto às orelhas o excesso de espuma, agora seca.
Trocou de ferramentas e aprontava-se agora para aliviar o Toino da “trunfa” que lhe crescera na cabeça, com se fosse “grama”. Colocou o pente no único bolso da bata e deu três ou quatro tesouradas no ar, como que a testar o funcionamento do utensílio. O som metálico das lâminas a cruzarem-se vão repetir-se, pelo menos, nos 15 minutos seguintes. A cada tesourada no cabelo correspondia, no mínimo, duas tesouradas no ar, um tique que o mestre fazia sem dar conta.
O cabelo que se desprendia da tesoura e caía sobre o colo do Toino parecia o pêlo da velha mula pigarça que tinha em casa. Acerta a patilha com a máquina “zero ”, afina, junto à orelha e na base da nuca com a navalha com que lhe desfez a barba e, depois de o inundar de perfume rasca, termina, sacudindo o “babete” no ar, fazendo-o estalar como um chicote.
Pagou e saiu, mas não levou o cabelo cortado.
Pela porta metálica de cortinas gastas, entram e saem estes pombos correios da coscuvilhice.
Zé, envolvido na bata branca que fazia questão de vestir, aberta à frente junto ao pescoço, afiava na tira de couro a navalha de lâmina reluzente com que havia de fazer os caldinhos. O seu desempenho dependia do “fio” que soubesse tirar do atrito com o “cabedal”. A barba rija dos “homens do campo”, mantida por fazer ao longo da semana, era ceifada, à primeira, deixando a cara lisa como rabinho de menino.
Duas palmadas no estofo verde, convidavam o Toino a sentar-se naquela cadeira maluca “marca Pessoa” que girava sempre que o mestre queria. Mestre Zé, que já tinha enfiado o apoio para a cabeça nos orifícios metálicos, inclinou o conjunto abrigando Toino a esticar o pescoço para trás e ajeitar os costados. Naquela posição em que oferecia o pescoço nu à navalha, Toino sentia-se desconfortável e para descontrair, respirou fundo e fincou as mãos no apoio dos braços. De costas para o “cliente” e preparando o caldo na pequena bacia de inox onde o pincel curto das “ensaboadelas” misturava sabão e água, Toino via-o reflectido no espelho enquanto este tentava fazer levedar a espuma branca do preparado. Pega-lhe no nariz com a ponta dos dedos, deixando-o a salvo da espuma que vai espalhando em movimentos circulares do pincel. De ambos os lados da cara, no pescoço, por debaixo do nariz, junto às patilhas de onde tira o excesso com a ponta dos dedos, mestre Zé estava pronto para passar ao ataque. A navalha deslizava em movimentos curtos e firmes, deixando a face sem espuma e sem pêlo. Com a ponta da toalha, limpou junto às orelhas o excesso de espuma, agora seca.
Trocou de ferramentas e aprontava-se agora para aliviar o Toino da “trunfa” que lhe crescera na cabeça, com se fosse “grama”. Colocou o pente no único bolso da bata e deu três ou quatro tesouradas no ar, como que a testar o funcionamento do utensílio. O som metálico das lâminas a cruzarem-se vão repetir-se, pelo menos, nos 15 minutos seguintes. A cada tesourada no cabelo correspondia, no mínimo, duas tesouradas no ar, um tique que o mestre fazia sem dar conta.
O cabelo que se desprendia da tesoura e caía sobre o colo do Toino parecia o pêlo da velha mula pigarça que tinha em casa. Acerta a patilha com a máquina “zero ”, afina, junto à orelha e na base da nuca com a navalha com que lhe desfez a barba e, depois de o inundar de perfume rasca, termina, sacudindo o “babete” no ar, fazendo-o estalar como um chicote.
Pagou e saiu, mas não levou o cabelo cortado.
domingo, 18 de julho de 2010
COISAS DO CATANO
Como sabemos, o futebol foi inventado pelos britânicos e foi através destes e dos vinhateiros do Douro, que chegou a Portugal, tornando-se no nosso desporto nacional. Foi de tal maneira, que explodiu por tudo quanto era sítio e não havia, a partir dai, santa terrinha que não tivesse uma equipa, por muito “fajuta” que fosse.
Só os bons, os artistas ou predestinados tinham lugar cativo nas equipas, os outros, por muito amor à camisola que tivessem limitavam-se, do banco, a ver jogar os “convocados”.
Certo dia os manos Alexandre, cuja compleição física abonava pouco para o futebol, mas movidos pelo desejo de fazer o gosto ao pé, juntavam a malta disponível no pelado das traseiras. Atapetado a pó fino, este “estádio da caganita”, não era coisa nenhuma. Torto e sem balizas, obrigava a trocar as equipas para equilibrar o resultado, uma vez que a bola, por força da gravidade, teimava em pender para o lado que mais lhe convinha. Mas à parte este pequeno pormenor da inclinação do campo, as equipas lá iam “evoluindo no relvado”, fazendo saltar uma nuvem de poeira cada vez que pontapeavam o esférico num passe mais em jeito.
Manel fica à baliza, que mais não era que dois montículos encimados por uma pedra, Rique fica à defesa, para varrer sem piedade. Depois de um embate titânico entre eles e os “lingrinhas” da rua de trás, regressaram a casa sedentos e irreconhecíveis, um por se mandar para o chão para evitar os golos e o outro pelos “cortes em carrinho” que deitavam por terra, os avançados adversários, com ou sem bola.
Manel, numa dessas defesas que levavam o selo de golo, reparou num pequeno pedaço de metal que emergia da terra remexida, pegou nele, limpou-o com a ponta dos dedos, esfregando-o com saliva e reparou tratar-se de metade de uma moeda. Guardou-a consigo, com o intuito de a mostrar ao irmão a caminho de casa. Assim fez.
– Olha o que encontrei junto à “baliza”- mostrando ao “mano velho” o semicírculo metálico que agora, sem sombra para dúvidas, lhe parecia ser metade de uma moeda de cinco escudos. Tem graça, disse o Rique - Encontrei também uma coisa igual a essa – afirmou ao mesmo tempo que levava a mão direita ao bolso das calças.
Por incrível que pareça, Manel e Rique tinham encontrado as duas partes de uma mesma moeda de cinco escudos, cortada ao meio sabe-se lá por quê. Bom seria ser inteira, que “cinco mil réis” sempre era dinheiro. Que fazer agora? - Vamos aos Quinas soldá-la, diz o mais espevitado dos dois.
E assim fizeram, “pegaram em sí” e foram à oficina das alfaias, existente na rua 5 de Outubro, pedir para ligar a moeda na expectativa de ficarem com a dita inteira.
Feita a tarefa, vamos a contas.
Espanto dos manos - soldar a moeda de “5 paus” tinha custado “7 e quinhentos”.
Outra vez, já adulto, um dos manos, imbuído na sofreguidão de construir sem demoras a casa daquele pobre coitado que tinha os tostões à conta para, “quatro paredes e telhado de uma água”, enlevado pela brisa da manhã que o predispunha para o trabalho, foi levantando sem demoras as 4 paredes da pobre habitação. Sempre à volta, somando a cada volta mais uma fiada de tijolo, que se apresentava agora bem acima da sua cabeça, lá seguia pedindo ao servente celeridades nas massas e nos tijolos. A coisa corria bem até que, num movimento mais brusco, a colher do trolha tropeça no fio esticado para o alinhamento e é catapultada além paredes, caindo para o lado de fora daquele prisma sem telhado. Havia que recuperá-la mas, quando se aprontou para o fazer, reparou com espanto ter-se esquecido da porta.
O “estádio da caganita” já não existe, tal como os manos Alexandre. O campo continua hoje, inclinado, empoeirado e cheio de entulhos anónimos, depositados a coberto da noite. Quanto aos manos, particularmente castiços e originais na sua forma de estar, há muito que se transformaram em pó.
Não será certo que o relatado tenha acontecido, pelo menos desta maneira, contudo, o que aqui se vê é a importância do conto como matéria de estudo das gentes simples dos quais não “reza a história” que, à sua maneira, brincaram com a vida para esta não os levar muito a sério.
MISS RIBATEJO 2010
O casting foi no dia 17 deste mês no Cine-Teatro de Almeirim.
As beldades apareceram a bom ritmo, para mostrarem o seus dotes fisicos (e chega), e pelo menos o espaço ficou com alguma gente. Até "doutores" apareceram, da mula russa. Realmente as redes sociais são propicias a este tipo de enganos, mas fica bem chamar-se doutor a quem nem o secundário tem completo (digo eu).
Faz-me lembrar o Brasil, não, não pela beleza das mulheres, mas sim pelo que lá se passa.
Doutores ou Coroneis...
Realmente em terra de cegos quem tem olho é rei. Mas os cegos não são cegos, ou não os deixam ver mais ou melhor ou convém passar por cegueta.
Eu não gostava de ter um país de doutores e de coroneis, não ...
Mas com esta sociedade, e com os problemas que enfrentamos nesta vida, já estamos quase licenciados em "SOFRER", mas isso não nos dá o grau académico, mas sim as coisas ruins que temos que passar.
Como diz a tradição popular "Cada porco tem o seu S. Martinho", mas enquanto essa data não aparece temos que "gramar" com este tipo de gente. Oportunistas, etc., etc.
Mas o que interessa realmente é a beleza das Ribatejanas, aquela beleza que nos anima e faz ganhar alento para enfrentar os maus dias que ai vêm...
sábado, 17 de julho de 2010
A BANHOS NA NAZARÉ
A Nazaré não é a esposa do merceeiro, é a praia mais castiça de Portugal e arredores.
No tempo em que parelhas de bois barrosões arrastavam lentamente os barcos a remos pela praia, encaminhando-os para a melhor zona para entrar no mar, ou ajudando a recuperar as redes, não havia “porto de abrigo”. A bendita construção veio trazer à Vila a segurança dos homens e das embarcações e com ela as mulheres das sete saias, podiam agora aliviar-se de preocupações.
O abrigo do porto obrigou a frota a “estacionar” em segurança, devolvendo aos veraneantes uma boa fatia de areia. Pelo chão ficaram os anzóis XL, que todos temíamos pisar e um conjunto de barcos que morreram na praia e que serviam de guarda-sol aos que se esqueceram do dito. O chão de sílica, que recebia as redes de pesca efervescentes de vida, estava agora desimpedido. Apenas as redes do “carapau escalado” nos reportavam a outra época e nos faziam lembrar parte do “postal ilustrado” que era, no seu todo, este pitoresco amontoado de casas de gente que vivia essencialmente do mar.
Do Sítio, observamos o mar imenso, rematado de espuma e tocado pelo vento norte. Cá em baixo, o listrado das “barracas”, perfeitamente alinhadas, coloria a zona vigiada pelos “banheiros”. Nesta altura, a televisão ainda era a preto e branco e “marés vivas” não era a série com da peituda Pamela Anderson, mas a revolta de mar que sacudia todo o que nele quisesse entrar.
Os putos, cumprindo a vontade dos médicos e dos pais, eram mergulhados nas águas salgadas do oeste contra a sua vontade. “Banheiros” experientes, sabiam como fazê-lo por entre o pavor, a respiração ofegante e as inalações de água salgada que saíam pelo nariz na forma de bolas de sabão de ranho.
Alguns adultos, pouco dados a estes ambientes anfíbios, “ficavam na barraca”, ao abrigo do Sol, comendo pevides e tremoços salgados. Outros, mais valentes, “iam às traineiras e vinham”. As “mulheres do campo” não arriscavam muito, mostrando apenas, pudicamente, os joelhos ao astro-rei e a um ou outro mirone imbecil, que sempre os haviam em quantidade nestes sítios com muita gente. Só as senhoras ousavam vestir fatos de banho, opacos e aconchegantes, verdadeiras armaduras de nylon que usavam com toucas de borracha às florzinhas, que lhes mantinham as carnes e os penteados nos devidos sítios. Amiúde, vinham à beira-mar pontapear as ondas que lhes espraiavam junto aos pés. Só as crianças quebravam as regras e “despiam-se para a ocasião”, fazendo com a areia, castelos esconsos que a subida da maré invariavelmente destruía.
A mulher de negro que ajeita o lenço na cabeça, escondendo um buço que mais parece um mustache, vende tremoços e amendoins numa banca de madeira e aluga quarto aos “cámones”… - rumesse, xambre, xambre, … quer “alugare” senhor, diz a velha nazarena sem estar certa de o conseguir, tentando adivinhar se a família é francesa ou é das Fazendas de Almeirim.
Agora é tirar o sal do corpo, vestir roupa lavada e jantar mais cedo, é preciso subir ao Sítio e comprar bilhetes para a tourada.
– 3 toiros 3 – Ganadaria Palha Blanco. A cavalo Simão da Veiga e Mestre Baptista, Forcados do Aposento da Moita e a pé, o africano Chibanga, exímio a bandarilhar na cara do toiro, vai tentar pregar os pés no chão da arena e deixar a besta, espumando da boca, roçar indelevelmente as lantejoulas do traje de “luces”, tentando com isso arrancar aplausos àquele aficionado do sector-sombra, que apregoa valentia, mas que não saltava lá para dentro, nem que lhe pagassem.
sexta-feira, 16 de julho de 2010
“PRAIA DOS TESOS”
Há falta de melhor praia, tínhamos o Tejo.
Quem não dispunha de tempo ou tinha pouco dinheiro, sempre podia passar um dia agradável, de pezinhos na água, praticamente sem “sair de casa”.
O rio grande era já ali, junto à Tapada, a aldeia que se constituiu do casario operário edificado pelo pessoal que ajudou à construção da Ponte de D. Luís I, que em tempos idos, pasme-se, apresentava portagem, ou seja, veículos, fossem eles quais fossem, pagavam para a atravessar, por isso utilizá-la para ir a Santarém (ou vice-versa), significava ser taxado com aquela espécie de coima.
Sobre a dita, muitas vezes haveria de passar o velho Lobo, a caminho da estação de comboios da Ribeira, para resgatar mercadorias que transportava na sua “galera” puxada por bestas. Tantas vezes cumpria a distância, no ritmo cadenciado e frouxo dos animais, que não precisava de se preocupar muito com a condução das "alimárias", nem em utilizar o “acelerador de chicote” para lhes dar gás aos cascos e assim chegar rápido ao destino. Dia após dia, semana sobre semana, as bestas, cansadas do mesmo percurso, acabavam por “decorar” as paragens e nesse sentido, podia o carroceiro descansar pois, o mais certo era só pararem no destino.
Naquela altura, existiam uns “moi-almas” que se divertiam a pregar partidas e, reparando que o velho Lobo, completamente “desligado”, dormia na boleia do veículo de madeira, que aportava à “pontinha”, vindo de Santarém, pensaram (e melhor fizeram), seguraram com cuidado as rédeas junto ao freio e obrigaram os animais a dar meia volta, para assim continuarem, sem sequer parar, novamente a caminho da estação.
Ainda hoje os "bedelhos", alguns já homens feitos, se riem da brincadeira, mas quem não terá achado graça nenhuma foi o Lobo que, quando acordou, se viu para lá da “casa do guarda”.
Mas voltando ao Tejo, outrora navegado por faluas, fragatas e bergantins reais e por um conjunto de outras pequenas embarcações que, a toque de vento ou à força de braço, evoluíam no bailado das águas, emprestando às suas margens, portos para certos prazeres de Verão, lá navegavam por ente arquipélagos de areia o trânsito das embarcações. Nesta época do ano, era frequente surgirem pequenas ilhas de areia que ficavam submersas quando o caudal provocado pelos Invernos chuvosos, obrigava a transbordar a água do seu imenso copo, inundando campos de cultivo e de pasto e obrigando a acautelar pessoas, bens e animais.
A sombra dos salgueiros e dos chorões, serviam de guarda-sóis e a lenha seca, deixada na “areia da praia”, servia para alimentar a fogueira para assar os "catalões", as sardinhas ou a fataça acabada de pescar.
Recordo um momento feliz, daquele miúdo sentado na areia morna da “praia”, preparando a “espingarda” feita de cana e vara de salgueiro. Pelo seu interior, haveriam de sair pequenas “balas” de madeira, empurradas pela tensão da vara “armada” em forma de arco. Presto aqui homenagem à “laranjada”, à “gasosa” e ao pão-de-ló, caprichos de mesa, que tornavam tudo aquilo mais desejável.
O rio sempre foi perigosamente enganador e os “fundões”, identificados pelos adultos pela escuridão das águas, faziam os mais temerários questionar os seus dotes de nadador quando nele se aventuravam. Muitos, perderam ali a vida, desafiando as forças nadando contra a corrente, ou mergulhando em "sítios com lenha".
Na “praia dos tesos” uma bandeira, feita com um lenço de nylon colorido, assinalava o local para que os pequenos não se perdessem. Os homens dormiam a sesta na fresquidão da sombra, enquanto as mulheres davam corda à “matraca”, enterrando os vivos e desenterrando os mortos, enquanto esfregavam com areia o fundo dos pratos de alumínio, retirando a custo o gordura da bela da sardinha que acompanhou a salada de catalão e tomate “xucha”.
O Sol queimava menos e o vento que corria no vale anunciava o fim do dia. Era hora de “embalar a trouxa e safar”. Os putos vestiam as camisolas, as mães ajeitavam as fráguas do cabelo que, com o vento, se libertaram do carrapito e os homens preparavam-se para levar a palamenta à ilharga.
Pelo chão, as poucas espinhas e os restos da salada envinagrada, abandonadas no local, eram disputadas agora por 10 batalhões de moscas que continuavam a chamar-se entre sí, as mesmas que, enlouquecidas pelo cheiro libertado da grelha nos tinham pousado, literalmente, em tudo o que era sítio, até mesmo no cocó fresco do “cão da malta”.
O banho tinha sido no Tejo, agora era só lavar os pés e deitar. Grande dia este, passado à “borda d’água”. Domingo que vêm o almoço vai ser fataça, pescada ao repuxão e assada no carvão, regada por fora com muito azeite, com pouco grau.
Mas, se ao azeite se retirava o grau para aumentar a qualidade, ao vinho pedia-se que o tivesse para o distanciar da água-pé e o tornar numa "pomada" apreciável.
Amanhã será outro dia de calor, igual aos demais, impiedoso para quem trabalha a céu aberto, mas igualmente penoso para quem o faz debaixo de telha.
Vou pôr o garrafão a refrescar no fundo do poço e Deus queira que chegue a domingo com saúde.
HARRE’MACHO!
Uma das maiores e mais trepidantes ruas de Almeirim, sempre foi a que homenageia o épico “mestre-escola de Sagres”, Infante Dom Henrique - que se lembrou, vejam só, de fazer uma escola naútica na ponta agreste onde nenhum barco poderia jamais aproar. Mas voltando à rua que de tanta trepidação, até enjoava, como o mar dos Algarves, verdadeira avenida de uma Almeirim pobre de alcatrão e rica de pó e buracos, era, pela particular razão de que fazia a ligação, em linha recta, entre o Depósito e o D. Manuel de Mello, bastante utilizada. Afinal, fora para isso que tinha sido atapetada a seixo rolado do melhor que se fabricava no mercado.
Nessa altura valorizava-se a arriscada profissão de construtores de poços. O risco era directamente proporcional à profundidade a que se faziam descer os anéis de tijolo e argamassa até às nascentes puras e frias a mais de sete metros de “fundura”. Havia-os bem mais fundos, com patamares intermédios, onde se colocavam motores a “tratol” que sugavam a custo, lá do fundo, o precioso líquido para alimentar as hortas dos quintais maiores.
Circulando a caminho do Pupo, pela dita “avenida”, sacudido pelo impulso dos amortecedores da sua velha motoreta, passou o Zé a caminho de casa, cansado de mais um dia de trabalho na “mina” da água de um quintal das Poupas.
Torcato, como sempre, brincava na rua, perdido no imaginário de quem tinha nascido com trissomia 21 e a quem eram desculpadas atitudes menos responsáveis. Parado junto à casa onde nascera brincava com uma espécie de chicote feito de uma verdasca seca de marmeleiro e uma corda mas, para rematar a ponta livre, atou-lhe uma etiqueta de madeira, daquelas que vinham a identificar as sacas das batatas holandesas.
Torcato viu o Zé passar-lhe pela frente, que distraidamente o cumprimentou, ao que este lhe respondeu arrefinfando-lhe uma bem assente vergastada nas costas. Assentou de tal maneira bem, no dorso do incauto motociclista, que o rectângulo da sua forma, ficou gravado na pele, por debaixo da camisa podendo com esforço, naturalmente, ler-se inclusive a marca das “batatas comboio”. No ar, embrulhado pela língua grande do mongolóide, ficou um arrastado arre’macho igual ao que tocava as bestas a caminho da charneca.
Ah, meu malandro! Agora dava cabo de ti… disse o pedreiro, desvairado pelo ardor que vinha do lombo das costas, semelhante a ferrão de vespa. Não lhe faças nada ó Zé, desculpa lá o rapaz, que ele, coitadinho, não têm culpa de ser “doente”, disse-lhe a Maria Galega que assistira a tudo.
Inconformado seguiu o seu caminho, mas agora sem apetite para a bucha da tarde, contudo a “vingança” não tardou a chegar. Passados uns tempos os dois encontraram-se, um para reconstruir um poço, que parecia pequeno para regar as hortaliças, o outro porque cirandava por perto. De pronto saiu a oferta, - Oh Torcato, queres ganhar uma navalha? Quero, disse o rapaz pouco convencido. - Ela está no fundo do poço, é nova e caiu lá para dentro agora mesmo. Como o pedreiro precisava de água para enrolar a areia e a cal hidráulica, diz-lhe sem piedade, tiras a água aqui para o tanque e depois de esgotado o poço, tiras a navalha. Contrato feito, o rapaz lá foi enchendo o tanque de apoio à horta que, os da casa, nos calores do Verão usavam como piscina. Cansado de tanta água tirar e não ver o fundo ao poço, nem tampouco a cor da navalha, Torcado desiste. As mãos cheias de bolhas, causadas pela corda áspera de sisal, seguiam agora a direcção dos bolsos. O tanque estava praticamente cheio e o Zé não precisava tão cedo que usar o balde e a roldana. A pequena vingança estava consumada e estavam agora quites.
Cada um seguiu o seu caminho, sendo que ao rapaz tudo haveria de parecer simples na sua ingenuidade que o seu corpo grande continha. José continuou, até que a saúde permitiu, abrindo poços a pulso, uma espécie de compulsiva "geofagia" que comunicava com os límpidos lençóis freáticos.
Hoje são máquinas perfuradoras que entubam o solo e trazem até à superfície o precioso líquido. Não seria possível com pá e roldana, tijolo e cadernais, descer tão fundo por isso, hoje, já não existem construtores de poços, nem hortas para alimentar famílias numerosas, nem “alcatruzes” para subir e descer nos poços, ao ritmo da burra que, a passo curto fazia rodar a “nora”. Hoje, com o milagre da água no cano, esquecemos o trabalho árduo e perigoso dos homens da terra que se aventuravam no interior da Terra.
quarta-feira, 14 de julho de 2010
GRANDE MALHA
Há muito tempo atrás, no tempo em que os automóveis ainda não plantavam, as ruas e os passeios, com as suas raízes de borracha, regadas amiúde por rafeiros sem dono, podia-se brincar "à vontade".
O tempo real parecia mais demorado, por isso dizermos hoje que, naquela época, havia tempo para tudo. Por assim dizer, havia, no falar dos mais simples – que eram quase todos - muito “v a g a r”.
Como haviam poucos automóveis, está justificadamente claro que era com dificuldade que se viam passar alguns deles naquelas ruas esquecidas do bairro nascente que, com dizia o Poeta, (saudoso amigo Francisco Henriques), terá “nascido das areias do deserto”. Alguns dos arruamentos, eram até evitados, manifestando os condutores, uma espécie de ostracismo resistente que os fazia escolher os de piso melhor conservado.
As ruas eram,por assim dizer, o sítio onde tudo acontecia. Muitas, naquele tempo, eram praticamente indefinidas por entre tapumes de rede e cana. A rua era uma espécie de extensão da casa que servia para guardar lenhas e alfaias, pilhas de canas, restos de obras e lixos vários, era até possível esticar a rede de “2 tombos” para apanhar os "verdilhões" mais gulosos por “bicho do canoilo”.
A rua, pertença de todos, era naquela época, mais de uns do que de outros.
Na rua jogava-se à bola e na rua despejavam-e as águas sujas das lavagens do quintal, ou da pocilga dos animais. Um fio de líquido castanho, perfeitamente identificável, tentava a custo infiltrar-se na terra batida, enquanto isso ficava por ali a desnortear as moscas. Na rua se cortavam lenhas, se lavavam “cascos”, se estacionavam carroças e latões da vindima. Na rua se sentavam as pessoas, em pequenos “mochos” ou no “pial” das portas, procurando o fresco que as casas não tinham. Nas ruas faziam-se fogueiras de S. João e nessas mesmas ruas, entre o Natal e os Reis, queimavam-se cêpos de eucalipto, que convidavam à conversa, à noitada e aos copos.
Mas, nas ruas mais largas e desafogadas, jogava-se à malha. Principalmente aos domingos, os homens, pouco dados a dominicais visitas à igreja, arranjavam maneira de matar o tempo, lançando pedras com força, contra “bichos” repletos de moedas de “dois e quinhentos”.
Escolhida a pedra, por entre milhentas hipóteses, sempre aparecia uma que melhor se ajustava à mão. Marcada a distância ao “marralho” e colocado o semi-círculo de pedra que murava as moedas, o jogo podia agora começar. Uma boa meia dúzia de jogadores da malha já tinham colocado as suas moedas e afastavam-se agora para a zona de lançamento, grosso modo, equivalente à distava entre ruas, na sua largura, bem entendido.
O peso da “malha” era directamente proporcional ao tamanho do lançador, por isso, o pedreiro, de mãos largas e pescoço curto, ostentava um bom pedaço de pedra que poucos ousavam lançar. Elevando o seixo espalmado à altura dos olhos, tirando “as medidas” certas para a trajectória, a mão destra do braço forte, descia junto à anca e, num movimento firme prá frente, ao mesmo tempo que a perna esquerda avançava, catapultava-se com força e jeito aquele generoso pedaço de pedra. A ideia era aterrar antes do “bicho” e fazê-la deslizar mansa e rente ao chão, para que o toque fosse suave e as moedas, espalhadas pelo embate, ficassem próximas da malha. Quem observava empolgava-se quase tanto como os que jogavam, mas havia cautelas que tinham de ser aplicadas, por isso, ai de quem se atravessasse à frente, para além do perigo, era “invasão de campo”.
A tarde caía e o Sol apresentava-se agora mais piedoso. Era altura de parar com o jogo e beber uma fresquinha no café do Reinaldo. Domingo que vêm há mais, porque alguém pediu a desforra. Havia agora que trocar as moedas que pesavam nos bolsos fundos das calças. Sai uma imperial preta e um pires de camarão do rio! … afinal são duas, que o Manel João também bebe.
terça-feira, 13 de julho de 2010
HOJE HÁ “COMÉDIAS”
Na pacatez das aldeias, ou em pequenas vilas como a nossa, os saltimbancos aportavam nos largos e nos cruzamentos mais francos e instalavam-se acreditando com eles ter chegado “o maior espectáculo do mundo”. Eram errantes como os gatos sem dono e apareciam para mostrar a espectacularidade das suas habilidades circenses. Para aumentar a expectativa e servir de “cartaz”, começavam por montar o “perigoso” trapézio. Duas verticais metálicas, uma barra horizontal, 3 pares de espias metálicas cravadas no saibro duro e uns quantos cabos esticados amparavam a periclitante estrutura que, exactamente no meio exibia um baloiço rematado a fio vermelho, o mesmo onde a estrela da companhia haveria de se exibir à luz frouxa da gambiarra.
Era importante criar empatias com os moradores, uma vez que o espectáculo e parte do seu dia-a-dia por estas paragens, dependia destes. Água e “luz”. Especialmente a última fundamental para a realização da performance, sem ela, no escuro da noite, as gastas lantejoulas do maillot da contorcionista não seriam vistos nem os olhos “arremelgados” daquele parente que há muito não via uma mulher jovem, assim exposta, em trajes menores.
A hora era esperada com ansiedade, pois não era todos os dias que havia “comédias”. O saguim, de pêlo dourado-esverdiado de olhos pequenos e vivazes, preso pela coleira, subia e descia as cordas enviesadas que sustinham o trapézio. A rapaziada ria-se das macacadas, mas não ousava tocar-lhe. Diziam que mordia como um cão e por isso ninguém queria experimentar, na pele, os dentes afiados do símio africano.
Estava na hora. As pessoas iam-se juntando por pequenos grupos, sendo que os mais novos, há muito que por ali estavam, tinham jantado à pressa, como faziam a maior partes das vezes, só que agora por outra razão que não a brincadeira de rua.
O fio que saia da loja do gaveto, trazia a luz emprestada. Estava tudo a postos. O círculo desenhado pelos espectadores à volta dos tapetes estendidos no chão, estava agora fechado, mas os seus anéis iam aumentando à medida que os retardatários, resmungando, que não valia a pena perder tempo pra ver aqueles pobretanas a fazer uns malabarismos, se colavam nas costas dos que a custo mantinham as suas posições.
Chegou o apresentador que, com voz firme, foi agradecendo a presença… que valia a pena esperar para ver os artistas que se preparavam para mostrar o que raramente se via por aquelas bandas. Pediam-se palmas e o público ofertava-as. Eis que se encaminhava, para o eixo do círculo, a jovem e maleável contorcionista que se rebolava no tapete, tentando fazer a “ponte” perfeita e, a custo, puxava a ponta da sapatilha para junto do nariz, dobrando a perna por cima da cabeça. Ouvia–se o peso do pequeno corpo a tocar o tapete e essa proximidade tornava a coisa mais real. Da corda formada pelas pessoas mais afastadas, seria impossível ver a rapariga que se esfalfava para mostrar o seu “número”.
Apareceram depois dois palhaços - uma trupe - como se diz em linguagem circense que, a custo, faziam saltar gargalhadas. Tocavam, não sei bem que instrumentos e com a sua música de cordel, saíram de cena tentando fazer um feedout sonoro que não funcionava.
Chegou a hora da trapezista, suspeito que a rapariga é a mesma que actuara no tapete, embora o “fato de banho”, outrora de cores vivas, fosse diferente, bem como o “apanhado" do cabelo.
Subia a pulso a corda que a levava ao balancé vermelho. Sentou-se e começou. Perna para dentro, braço para fora, sem mãos, dependurada pela concha das pernas ou suspensa apenas numa, lá ia a moça evoluindo, rematando as “avarias”, elevando o braço e rodando a mão aberta, como fazem as bailarinas indianas, dizendo… “oliopsssss”. Desceu e sumiu-se para fora do alcance das luzes.
Entrava agora uma anafada senhora, talvez a matriarca do grupo, que já não tinha pernas pró trapézio e em “fim de carreira” limitava-se a “bordar” recortes em papel de seda. Como se de magia se tratasse, a gasta senhora, que tentava com o excesso de pintura esconder o cansaço dos anos, de braços atrás das costas, para aumentar a dificuldade (e esconder o processo) ia, ao som de música articulando as pernas numa espécie de dança, ao mesmo tempo que talhava no papel, dobrado em triângulo, qualquer coisa para nos surpreender. Alguns minutos depois… eis senão quando, desdobrando o que houvera feito atrás das costas, e para espanto dos mais ingénuos, fazia aparecer, da tal folha de papel vermelho, uma “toalha bordada com mil recortes”, levando os parolos a questionar como teria ela conseguido, sem ver e sem tesoura, fazer coisa tão intrincada.
O público do anel exterior safava-se agora, de fininho, precisamente na altura em que se iniciava a colecta por entre o público. Os tais que tinham ido a custo, mas que se tinham mantido até ao fim, eram os pobres de espírito que se afastavam agora da justa mendicidade.
Tudo isso acabou, ficando apenas as memórias do tempo em que havia os “circos da 3ª Divisão”.
“RISCADO” PRÓ FATO
Toda a gente sabe do jeito especial dos ciganos pró negócio. É uma espécie de karma, que com eles nasce e que não os abandonará jamais. Trabalhar sim, mas nas suas “artes” tradicionais, nada de horário com entrada e saída e muito menos um patrão que lhes diga quando e como fazer. São por isso, uma classe social que se particulariza pela especificidade da sua cultura, antes nómada, fundamentada nas tradições ciganas de apego à família e defesa do clã e cada vez mais fixa, “inserida” e integrada na vida social da terra que acabar por ser, também, a sua.
Existe, talvez, o sentimento de que, embora fixando-se, cigano será de todo o mundo e de nenhum sítio em particular. Bom, mas à parte tudo isso, os que nasceram, brincaram, aprenderam na mesma escola, cresceram e morreram na zona do nosso bairro, eram os nossos ciganos… e pronto.
Alguns, vendiam tecidos porta-a-porta ou nas feiras montavam banca, outros eram especialistas em tosquiar gado muar, como o falecido Chico,que se ajeitava com as tesouras, fazendo junto das crinas trabalho de verdadeira mestria, rematadando junto à cauda com elaborado desenho geométrico que decorava a zona terminal da besta, ligeiramente acima do dito-cujo, por onde, e em situações pouco previsíveis, a aventesma haveria de expelir a palha ruminada lentamente, em forma de bolas redondas de cor e cheiro particular, que mal comparando parecia um pastel de bacalhau formato big mac. Mas nem tudo era desperdício, pois, algumas pessoas recolhiam-nos à porta de casa para com eles estrumarem a terra do canteiro dos nabos. Boa sopa haveriam de fazer com eles… belos nabos, benza-os deus!
Mas voltando ao que nos trás aqui, a malta cigana sempre teve dedo pró negócio e nunca perdia a oportunidade para o fazer, nem que isso implicasse muito regatear e ai quase sempre saiam por cima, por lhes ser reconhecida capacidade oratória, uma espécie de “namoro” que inebriava o ouvido e abria a carteira.
Ninguém, nessa altura, no seu juízo perfeito, emprestava dinheiro a um cigano. Mas o conhecido nómada, de “corte” ao ombro, depois de se ambientar e beber um branquinho na taberna do “Pipino”, sem medos, “arrefimba-lhe; Oh Se’João não me empresta ai, cinquenta mil reis que eu amanhã já lhe pago? – Cinquenta paus? Ripostou o taberneiro, homem sábio e bom de trato que estava cansado de propostas idênticas às quais habilimente sempre se tinha esquivado. Cinquenta paus é dinheiro, só tenho aqui trinta, disse o velho homem ciente de que teria resolvido ali a questão. Pode ser, diz de pronto o cigano ajeitando o bigode mal aparado que decorava a cara escura iluminada por uns olhos pequenos e vivos, dê-me cá os trinta… e fica-me a dever vinte!
Quer-se dizer, o taberneiro ficava assim, desta curiosa forma, a dever dinheiro ao cigano. No banco corrido de madeira, de frente ao depósito “aéreo”, alguns indigentes, pulhas e velhos, que “esfumaçavam Definitivos”, gargalharam com gosto. Da mesma forma que a peça de riscado não saiu do ombro do cigano – tecido bonito, temos de dizer, de fundo escuro, impecável, decorado com linhas suaves de cor cinza - também a nota da “rainha santa Isabel” não saiu da caixa das moedas.
Continuaram amigos (por conveniência talvez), até porque aquele sítio, encravado num cruzamento importante, onde uma errante trupe de saltimbancos várias vezes esticou os fios do trapézio, era uma espécie de porta-aviões, onde sempre se podia aterrar os ossos os descansar os cotovelos sobre o balcão de pedra e pedir um “copo”… dos grandes.
Já nada disso existe, pelo menos, desta forma. Já poucos são os alfaiates, capazes de darem forma à “calça por medida” e já não se vêem vendedores dispostos a transportar até ao cliente, ao ombro e em exclusivo, aquele tecido estrangeiro, com um “cair” fantástico, que transformava quem o vestisse, num verdadeiro “princês”.
segunda-feira, 12 de julho de 2010
BRIQUES SÃO TIJOLOS
Por altura das férias de Verão, rara era a rua, da outrora Vila, que não via estacionado um Renault ou um Peugeot de matrícula estranha, de onde sobressaía, colado no painel traseiro um autocolante com a letra “F” enquadrada por uma pequena bandeira tricolor.
Se dúvidas houvessem, quanto à origem de viatura tão moderna, seriam desfeitas logo que chegássemos ao café do bairro. Era neste local, ponto de encontro informal dos que vinham matar saudades da terra, que se ouvia, por entre o “falajar” dos nativos, o sotaque inconfundível do “franssuguês” acabado de chegar. Com ele chegou também a família, que por lá atracou depois de garantida a segurança do lar e do “travail”. Vinham perfumados e vestiam roupas “estranhas”, coloridas, ousadas até, e também pulseiras de ouro por entre o relógio, e ao pescoço, o pouco original crucifixo. Elas ousavam também, nos penteados e nas “pinturas faciais”. Nem sempre era assim, mas elas faziam limpezas para ajudar a amealhar e eles integravam o pelotão da imensa mão-de-obra que ajudou a construir certas zonas de França.
Espalharam-se por tudo o que era lugar, e para nós, que conhecíamos mal a geografia gaulesa, imaginávamos estarem todos pertos uns dos outros, ou pelo menos, que seria possível cruzarem-se por lá. É certo que fortaleceram os laços, organizando-se em associações sociais e culturais, espaços de “reflexão” para quem está longe da “pátria lusa”.
Falando alto, junto ao balcão, o “francês” expunha a anedota; num dos bidonville de Paris, onde muito portugueses (compreensivelmente) haveriam de viver até se mudarem para verdadeiras casas, alguém se lembrou de, na ponta de uma “varola”, espetada no meio do aglomerado, hastear a bandeira de Portugal, como se aquele território, dentro da cidade, fosse uma ilha com regras e língua próprias, claro, veio a polícia e mandou arrear “le drapeau bicolore”. Com os “irredutíveis gauleses” não se brinca. Depois, está por lá muito “filho de muita mãe”, “algerianos”, marroquinos, vindos como nós à procura do “el dorado”.
Das férias por cá passadas, ficava muitas vezes a lembrança, deixada na forma de uma bola de cauchut, rara por estas bandas, de gomos brancos e pretos, como as “oficiais”, com a qual haveríamos de disputar longos jogos em campos de terra solta e balizas marcadas por pedras. Passa, passa, … passa a boooola! Eh pá, já não se vê nada, amanhã jogamos mais.
Partiam como chegavam, em silêncio, agora com os carros cheios de mimos da terra, azeite e melões prá viagem. Ao revoir, que é como quem diz até pró ano oh “franciu”, quando voltares, ao passares por Badajoz, trás de lá uns caramelos daqueles que se colam aos dentes.
DEIXA ARDER, QUE O MEU PAI É BOMBEIRO
Nesta paisagem de transição onde nos integramos, que separa a nossa região do Alentejo, faz calor pra caramba. Nos dias em que os termómetros chegam aos 40, o que não é difícil nesta região ou nesta época do ano, fazem com que o alcatrão das estradas, ao longe, pareça estar molhado, miragem tremeluzente que nos confunde, como aos perdidos no deserto.
Os pastos e os campos pejados de verde e de flores espontâneas que pintam a nossa paisagem de cores mil, passam a palha seca, quase de um dia para o outro, e tornam este material altamente combustível, que qualquer “pirisca” mal apagada transforma num tapete de cinzas “em menos de um fósforo”. Dentro da cidade, os cuidados com a segurança são também para ser levados a sério e, por essa razão, palhas, madeiras, lenhas prá lareira, botijas de gás, grelhadores, barbecues e outras artes do carvão devem ser praticadas com muito cuidado, porque se o fogo pega... vamos ter de chamar os Bombeiros.
Antigamente ser bombeiro era pertencer a um grupo de homens destemidos que vestiam a farda a qualquer hora do dia ou da noite a troco de pouco mais que, nada. Incondicionalmente, e sem saber que socorro os chamava, saíam dos empregos, do café ou da cama, com frio, com chuva, ou debaixo do “estúpido”calor do Verão, sempre que o toque aflito da sirene os chamava.
O silvo que percorria o ar mexia com todos, que se perguntavam numa tentativa de adivinhar a causa da aflição. Quem está a precisar de ajuda? Se o toque era demorado e parecia interminável, era pela simples razão de que o “bombeiral” não tinha saído do quartel e isso aumentava a ansiedade de todos. “Três toques”, era acidente, dizia a “sabedoria” popular, mas, nem sempre era assim.
Rápido a pedalar na sua bicicleta roda 28, passava o saudoso “Monarca” a caminho do quartel, gatilhando a campainha de metal que avisava para deixarem passar o homem que seguia em socorro de quem dele precisava. A bicicleta entrava, à pressa, no antigo quartel e ai deixada até, sabe-se lá quando. Pintadas de rubra cor, as letras dispostas em semi-círculo sobre o portão largo de metal, identificavam a associação dos Bombeiros Voluntários de Almeirim.
O autotanque de marca estrangeira, potente mas lento, abençoado pela sua madrinha no dia inaugural, saia a caminho do local, carregado de água, de escadas e mangueiras e de homens que, sentados na viatura, ajeitavam as fardas e ajustavam o francelete dos capacetes de latão que o sol espelhava. A vibração e a excitação da azáfama junto ao quartel, passava aos mirones que por ali se juntavam, tentando obter informações sobre o acontecido.
Tratava-se de fogo no mato, coisa de pouca importância. Metade do autotanque chegava para estancar a fúria das chamas que, vencidas pela água lançada à pressão pelas mangueiras de lona seguradas, a pulso firme, pelo destemidos “soldados da paz”. Feito o rescaldo, era hora de arrumar o equipamento e regressar ao quartel, onde o desejado e justo banho retemperaria as forças. Era hora de arrumar o cinto e o machado e pousar o capacete que necessitava de estar impecavelmente areado para logo à noite… serviço de segurança ao cinema. No cartaz da sessão de sábado, às 21h30, iam passar os “Sete Indomáveis patifes”, na matiné de domingo “Trinitá Cowboy Insolente”… pancadaria bravia.
domingo, 11 de julho de 2010
TAXI DRIVER, MAS POUCO
Antigamente as distâncias não eram as mesmas. Das duas uma, ou os sistemas métricos eram diferentes, o que francamente não pode ser, visto afinarmos pela convencional medida europeia conhecida como “metro”, com os seus múltiplos e submúltiplos, dos quais se conhecem também as “léguas submarinas”, (estranho) sistema de medição usado por Júlio Verne no seu livro de aventuras (que consultando o “conta léguas submarinas” seriam perto de 20 000), ou a nossa relação com a envolvente era falha de rigor.
Talvez, nessa idade, tudo nos parecesse mais longe, mais alto... mais forte… (onde é que já ouvimos isto?). De uma forma ou de outra, “ir lá abaixo, era longe pra caramba. As pessoas referiam-se assim quando falavam em descer à Vila, ao seu coração administrativo, ao mercado municipal, à “pharmácia”, às compras mais delicadas, a outro tipo de mercearia. Ir “lá abaixo” era diferente de ir “à pontinha”, que como o nome indica, era quase sair do burgo a caminho de Santarém.
Nesses tempos, em que os bairros se encontravam, por razões de planeamento (planeamento???) urbanístico, afastados uns dos outros, era possível perceber os seus limites, ou pelo menos definir as “fronteiras” entre os vários “estados laicos”, ditos assim a brincar, por não haver capelas ou oragos para venerar. As igrejas, capelas ou “passos” da “via Ápia” estavam todas na parte antiga. Nestes aglomerados de gente, maioritariamente remediada, de que o bairro do Pupo (consequência da visão de um homem sabedor e humanista, ligado à agricultura, que possibilitou aos assalariados rurais, em finais de 50, adquirir o seu próprio lote urbano) serve aqui de exemplo, pela singularidade dos seus habitantes, verdadeiro “caso à parte” em identidade bairrista, para colocarmos aqui a questão os táxis.
Apenas no núcleo central se podia pisar alcatrão, tudo o resto era seixo rolado e muita terra batida que no Verão se transformava num pó fino a “atirar” pró escuro e nos Invernos diluvianos se transformava em lama pegajosa e salpicante. Digamos que, a partir do cruzamento do “poço da morte”, que cruzava as “Milheiras” com os “Aliados” o alcatrão se eclipsava dando lugar a um trilho minado, já despoletado, do qual restava uma tormenta de buracos, com ou sem água, que faziam com os taxistas blasfemassem cada vez que o serviço era para tais bandas.
As viaturas, estacionadas junto ao Jardim da República, estavam quase sempre impecáveis, uma vez que os taxistas passavam os tempos livres a lavá-los com balde e esponja. O “carro de praça” era uma ferramenta de trabalho que o chouffer tentava manter num brinco. As cores características preto e verde ervilha, que o sol desbotava, tornava inconfundível a viatura de aluguer, que servia bastante para levar as pessoas que não tinham viatura para chegar à estação de comboios ou ao hospital ou estavam incapacitados de o fazer pelos seus próprios meios. “Chamar” um táxi era luxo e por essa razão evitava-se.
Nem todos, naturalmente, tinham pelos bairros periféricos o mesmo sentimento de desprezo mensurável pela falta de simpatia observável na expressão do rosto ou na ausência de diálogo para o cliente que acabara de o contratar para o “frete”.
Felizmente que o alcatrão surgiu, não sem antes, por baixo, se colocarem as condutas de esgoto, coisa importante trazida com os ventos de Abril.
Agora que a cidade se apresenta de asfalto calçada em praticamente todas as ruas, excepção feita às que ainda mantém o tradicional e super-trepidante seixo rolado, os táxis podem sem temor, resgatar os seus clientes sem medo de enlamear a pintura, sendo certo que a acontecer tal infortúnio, a cor creme-macilento que hoje ostentam lhe dá a garantia de camuflagem.
Façam-nos um favorzinho, troquem lá essa cor, que “não está com nada” e voltem a pinta-los de negro e ervilha. Não é de revivalismo que falamos é de cultura nacional.
Leva-me à estação da Ribeira, se faz favor?
sábado, 10 de julho de 2010
PAPAGAIOS DE PAPEL
Em miúdos, sem percebermos nada de aerodinâmica, conseguiamos pôr a voar um papagaio feito de papel e cana. Em adultos, a maior parte de nós, continua a questionar como é que aquelas pesadas máquinas voadoras, que cruzam os céus por cima de nós, carregadas de gente, de malas, de todas as cores e feitios, de correio que urge em chegar e de depósitos a abarrotar de combustível, puxados para baixo pela implacável força da gravidade, conseguem voar sem “dar às asas”.
O voo dos pássaros sempre fascinou as mentes mais inquietas, como a de Leonardo, por exemplo. Experimentar a sensação de liberdade das aves, olhar a paisagem em “picado”, ou migrar para outras paragens acompanhando a “maré” dos ventos, sempre foi desejo libertário do Homem, por isso meus amigos, quando os rapazes se juntavam para fazer os papagaios, havia ali uma inquietação que qualquer psicólogo explicaria facilmente. Quero acreditar que muito do voluntariado para as tropas aerotransportadas vem desse desejo recalcado, se bem que, saltar não é propriamente voar.
Passando ao que interessa. Para os construir eram necessários os materiais, as canas, o “cordel das chouriças”, a cola, feita com farinha de trigo amassada com água, e o papel. Convinha, antes de mais, escolher bem as canas, sendo que estas podiam encontrar-se ali, “à mão de semear”, ora como pau-da-roupa, como vara para caiar, ou ainda servindo de apoio ao enleante feijão verde da horta.
Retalhadas ao meio com cuidado, para a simetria se manter, era feita a cruzeta inicial, à qual se juntaria uma terceira cana, de igual tamanho que, bem apertada no eixo das duas, formava a estrutura rígida do papagaio em forma de estrela de 6 pontas. Havia agora que ligar as ditas, usando o mesmo cordel cor de areia, levemente encerado, que servia para atar a “tripa” dos enchidos.
Construindo o losango, com canas e cordel, estávamos prontos para iniciar a aplicação do papel comprado na mercearia de bairro, a mesma que vendia o petróleo e os sabões, as sêmeas para os animais, a alpista para os pássaros de gaiola, o “vinho ao garrafão”, os fósforos e os “mata-ratos”. A cor era escolhida pelo que havia em prateleira; azul, amarelo ou vermelho, sendo que, muitas das vezes se colavam duas folhas de cor diferente para dar estilo à máquina voadora.
Colar, com amido, obrigava a colocar a quantidade de água certa e a distribuí-la uniformemente com a ponta do dedo ao longo da badana deixada “a mais” em toda a volta, para aprisionar o cordel entre o papel. Era importante reforçar, junto ao eixo, com um círculo de papel mais encorpado, para que não se rompesse na zona onde se atava o fio principal. Outros dois pedaços de cordel, saídos das duas extremidades superiores, deviam ser atadas tendo em atenção a inclinação do conjunto lá no alto. Estava a esquecer a tesoura, usada com mil cuidados e emprestada com mil avisos, que por ser ferramenta de costureira e afiada com sabedoria pelo galego amolador, deveria ser devolvida quanto antes.
Com ela eram feitos os pormenores, ou seja, as franjas que decoravam os remates junto à extremidade das canas. Era giro ver aquilo a abanar com o vento. Dois ou três rolos de cordel enrolados em “oito” num pequeno pau de eucalipto, chegavam para ver aquele espectáculo colorido, afastar-se de nós a caminho dos céus. A distância, e a curva feita pelo cordel a caminho do eixo, desmaterializavam-no e confundiam-no com o céu, criando em nós a falsa ilusão de que “voava” sozinho.
Havia-os em formato de “bacalhau”, que ficava sempre bem com o seu “rabo” colorido, feito com pequenos trapos, atados espaçadamente. O tamanho desta cauda era testada e o equilíbrio da “aeronave” dependia do seu peso. Para lançar o papagaio bastavam duas pessoas, o que segurava e o que puxava, sendo que, a responsabilidade maior, cabia ao “piloto” que corria na pista esperando que, atrás de si, aquele espectáculo de papel colorido se elevasse descolando a cauda do solo a caminho do éter.
Com a chegada da maravilha da luz eléctrica, as ruas encheram-se de postes e “postaletes” e os “fios da luz” passaram a ser uma armadilha para a “aviação” de papel e cana.
Se uns viam com bons olhos o anunciado progresso, outros, crianças, com uma visão limitada do mundo, só não os cortavam porque não podiam. Por isso era frequente ver os despojos de algumas dessas máquinas, outrora objecto de orgulho e de disputa, a abanar no estendal dos fios da “Hidroeléctrica Alto-Alentejo”, enviando s.o.s. de resgate aos pilotos da eira.
sexta-feira, 9 de julho de 2010
RITA, DE SEU NOME
Antigamente a escola não era igual à de hoje… e ainda bem!
Com o passar dos anos vieram as mudanças, os estatutos sociais alteraram-se, as políticas também e um professor “primário” está longe de ter estatuto de “importante”. Este grau conferia-lhe, em tempos idos, uma sobranceria equiparada hoje à dos jovens gestores bem sucedidos, daqueles que usam botão de punho herdado do avô paterno. Um professor jamais será “autorizado “ a bater num puto, como o faziam até aos anos setenta (pelo menos), mesmo que, incentivado pelo pai ausente, rústico e pouco sensível que ao professor dizia -“se ele se portar mal, o senhor professor, não lhe perdoe”- Ora, era o que docente (indecente) queria ouvir.
A coberto da insensatez do pai, aquilo eram favas contadas e então quando os trabalhos de casa coincidiam com as brincadeiras de rua, o mais certo era a mala ficar fechada até ao dia seguinte. Como os pais dos meninos, muitos deles analfabetos, tinham mais que fazer, a pergunta sacramental era - “fizestes” os trabalhos da escola?. Nos sessentas, havia aulas também ao Sábado, até ao meio-dia, um pouco diferentes é certo mas igualmente obrigatórias.
Desses tempos, do quadro de ardósia e do apagador de feltro, do estrado ao canto da sala, onde se apoiava a secretária do “mestre-escola”, da “cana da índia”, comprida e seca que acabaríamos por descobrir (na pele, e nas orelhas) que não servia só para apontar o mapa de Portugal. Normalmente a vara de bambu, semelhante a cana-de-pesca sem passadeiras, era presente de um colega “estúpido” que logo-logo ia descobrir que seria o primeiro a estreá-la. Na parede, sobre o quadro e a porta, ladeando um crucifixo de madeira com a representação em metal, disputavam importância dois retratos a preto e branco; o senhor Presidente do Conselho, que acabaria por cair da cadeira (ou foi da banheira?) e o senhor Almirante, esposo amorfo da Dona Gertrudes, conhecida pelo seu penteado tipo juba de leão. Os dois, omnipresentes em todas as salas de aula, observavam-nos a cantar o hino nacional, de pé, e a apanharmos com ela, em ambas as mãos.
Nenhum dos três, dependurados na parede da sala, tinha pena de nós. “Abandonadas” na escola, as crianças tinham pouco estatuto. Eram crianças que um dia seriam homens, e pronto. Dentro da sala ninguém nos podia valer e então quando era dia de distribuir as provas, feitas em papel azul de 25 linhas, o estômago revolvia-se tentando reter o papo-seco comido à pressa ou a caminho da escola. Era difícil manter a calma perante a saraivada de reguadas que se adivinhava. A uns mais do que a outros, naturalmente, mas sempre havia aquele “bombo” que servia de “saco das marradas” e de exemplo. O que nos salvava as mãos, postas ao rubro em menos de duas reguadas, era o ferro forjado das “carteiras” que, pela sua condição de metal se conserva fresco e nos supria a dor. Um bálsamo sempre a jeito, para ambas as mãos. O professor, em solene ritual, tirava o casaco, aliviava a gravata, arregaçava as mangas da eterna camisa branca e chamava pelos nomes. Sobre o tampo da secretária, mas em cantos opostos, lá estavam os exercícios, os “maus” de um lado e os “bons” do outro, sendo que o nosso podia estar em qualquer um dos cantos. Por incrível cobardia, o nome escolhido para a régua com que amiúde e com força, nos mostrava na palma das mãos, chamava-se Rita.
Era esse o nome dado aquele pedaço de tábua, que um dia partiu o relógio ao Casimiro, não só por este usar o mostrador virado prá palma da mão, mas também por ter errado as contas de multiplicar com 3 algarismos.
ARROJO E AUDÁCIA
Por altura da Festa do Senhor dos Passos, havia em Almeirim, um magnetismo que nos atraía para o Largo dos Charcos. Duas coisas aconteciam com igual importância, uma festa religiosa, com procissão solene, que nos reforçava a fé e nos convidava a vestir a nossa melhor roupa e outra, de índole pagã, não menos importante, mas bem mais divertida.
Era assim em Abril, coincidindo com Páscoa, todos os religiosos anos. Quem não se lembra do colorido e inquieto carrossel e dos “corta-bilhetes”, pulhas errantes, nómadas “sem eira nem beira”, actores daquele palco circular em movimento, que entravam e saíam da onda em movimento, de costas, de frente, de lado, esquivando-se aos cavalos e às girafas, ou dando corda aos “penicos”, como se não bastasse já os altos e baixos da plataforma a rodar em círculo, ainda girava o dito sobre o seu próprio eixo. Era de pôr as tripas em reboliço e a cabecinha “amareada”. Dos carrinhos de choque e da voz estridente do altifalante que anunciava mais uma viagem, das barracas de tiro, verdadeiro antro de devaneio onde mulheres de decote generoso e cabelo pintado convidavam languidamente os curiosos - “oh simpático, vai um tirinho?”, enquanto carregavam a “flaubert” de mira desalinhada. As pequenas bolas de papel prateado e colorido, cheias de serradura, dependuradas na ponta de um elástico, não sei bem para que serviam, já a roda da “sorte” encravada entre os passantes, servia para tentar a fortuna. Ganhar uma “gaita-de-beiços” (talvez o mais apetecido dos prémios), um canivete, um baralho de cartas ou mesmo um pente, tornava vitorioso o ingénuo apostador que acreditada ter sido ele (apenas) a controlar o balanço da roda.
No ar misturava-se o cheiro do frango assado no carvão, vendido nos restaurantes de feira, com a fragrância das amêndoas coloridas, cujo sabor jamais será o mesmo. Mas, de entre as muitas e curiosas coisas que a feira nos podia oferecer, havia uma que fascinava novos e velhos. O Poço da Morte – “Nelson & Ruthe, arrojo e audácia, num desafio permanente com a morte…”. Numa plataforma que elevava os artistas ao nível dos nossos olhos, uma BSA a 4 tempos, negra a rolar sobre cilindros.
O chamariz estava montado. Atrás do Nelson, que vestia camisa preta e calça breeche de cor caqui dentro de uma botas altas “de montar” impecáveis, o poço de madeira, misterioso e perigoso, marcado por dentro pelos rastos dos pneus nas paredes verticais onde, várias vezes por dia, se desafiava a morte. O rolar sobre os cilindros fazia vibrar a estrutura e aumentava a excitação dos mirones, crescendo em expectativa cada vez que “punha” uma mudança ou se colocava de pé sobre o motociclo, equilibrando-se entre o banco e o guiador. Duas enormes imagens dos protagonistas, realisticamente pintadas, faziam a diferença entre as demais. Estas imagens, de escala “gigantesca”, representavam os destemidos motociclista. Ruthe vestia igualmente “calças de montar ”, bota alta e luvas negras, diferindo de Nelson apenas no “corte” da blusa e do cabelo.
As altas lonas pintadas, esticadas na vertical, faziam lembrar as telas que anunciavam os filmes da Ava Gardner ou da Gloria Swanson. Memória feliz a do Poço da Morte no largo dos Charcos.
quinta-feira, 8 de julho de 2010
NÃO TEM NADA QUE SABER…
É andar com um pé no ar, e outro no chão a bater. Contava uma pessoa amiga da família, que viveu a coisa de perto, que um baile naquela época, por ser raro, incendiava os mais novos na expectativa de estarem bem junto a elas, pelo menos no mesmo espaço, embora algumas marcassem com braço firme a distância entre os peitos delas e botões da camisa deles.
Definidas as distâncias a mulher mantinha-se honrada nas suas virtudes de “casadoira”. Os bailaricos eram, portanto, o pretexto para os homens se aproximarem das mulheres e essa proximidade era, incondicionalmente, definida por elas.
O anúncio corria rápido entre os jovens, sabendo-se que, para haver “baile” era preciso arranjar tocador, mas também, que o mesmo estivesse disposto a actuar. Do cachet não fazemos ideia, talvez fosse ajustado se houvesse consumo no “bar”, explorado a favor do artista-músico. O local era parte de um quintal no Pupo, onde as galinhas, descaradas, debicavam o chão à procura de, não sei bem o quê. Talvez apenas grãos de areia fina que ajudassem a moela na sua função digestiva. À parte disso, havia espaço suficiente para rodopiarem umas modas ao som da monocórdica concertina de botões. O evento tomava o nome do tocador da concertina e a questão era colocada da seguinte forma, vais ao baile do “Levezinho”? Já nem era preciso perguntar onde, pois era por demais conhecido. Custava a crer, sendo o repertório fraco, como seria possível ao mestre concertista, manter a malta firme, sem arredar pé. Talvez os “bolinhos secos de taberna” e a ginjinha caseira fizessem a outra parte, pois música, era coisa que saia a custo por entre os botões de madrepérola. Contava-se, que alguns dos ditos, impulsionados pelas molas que os faziam voltar à posição de “descanso” e espevitados pelos requebros do tocador, se soltavam do conjunto e, uma vez por terra, serviam de entretêm às galinhas.
Lembramos este velho músico, de ar simpático, com a sua caixa de madeira de fole musical à porta do café do bairro, tentando, a pedido dos presentes, recordar as melodias que deliciaram os mais velhos. Recordamo-lo sentado numa cadeira, cá fora, na terra batida da rua, percorrendo a custo a “escala” da velha concertina.
RABISCOS NÃO SÃO “RABISCO”
Antes era mais tarde, lá pra Setembro. Agora começa-se em Agosto e no final do “mês das férias grandes”, alguns já terminaram a vindima e já lavaram os cestos.
Com o cuidado posto no amanho da vinha, a poda e as curas feitas no tempo certo, os “vôes” limpos de erva e desafogados de vides, os utensílios – latas, latões, encerados, “medidas” – a jeito, era escolhida a altura para fazer o que tinha de ser feito. E parafraseando o nosso amigo e Poeta Francisco Henriques, nesta altura, “morre a uva, para que nasça o vinho”.
As ruas enchiam-se do cheiro forte do mosto, pegagoso e doce. Os lagares particulares, caiados por fora na “época baixa”, eram preparados para o ritual, as cordas e as madeiras lavadas e os depósitos subterrâneos inspeccionados. Entretanto, no campo ou na charneca, as vespas, “loucas de desejo”, procuravam por entres os cachos no “latão” o adocicado hipnotizante da uvas “farnãopires” ou, sem aviso, saindo a toda a velocidade da cepa onde tinham o vespeiro, directas aos braços ou aos olhos das incautas vindimadeiras. Alerta dado e depois de alguma acalmia, vinha sempre alguém, destemido, que num gesto rápido, desfazia o “ninho” esfregando-o entre as parras. Para não deixar cacho ou “esgalha” para trás, a tarefa tinha de ser feita com olho de falcão, afastando as folhas e entrando na videira. Os bagos caídos eram recuperados do chão, em ano mau tudo era contabilizado. Depois, havia sempre alguém que se predispunha a fazer uma água-pé, mesmo sem ter vinhas. Os barris de 50 litros, “inchados” de água e apertados nos seus anéis metálicos, estavam preparados para receber o “rabisco”.
Pela calada da noite ou com a consentida presença do dono da propriedade, lá iam em pequenos grupos de saca na mão, vasculhar por entre as cepas, as mesmas que no entendimento do fazendeiro já tinham cumprido a sua dádiva, recolher as “esgalhas” e até os cachos esquecidos na troca da “carreira”. Esmagadas em casa, num lagar improvisado, a massa e o sumo e uma dose generosa de água, eram vertidas para os pequenos barris que as esperavam bem “calçados” de encontro à parede. A surpresa estaria para quando se “abrisse” a água-pé, lá para o frio Novembro.
Com sorte, a “pomada”, híbrida pela confusão aleatória das castas rapinadas, daria uma bebida, não filtrada, de travo vincado a “caseiro” e “fraquinha” de teor alcoólico.
quarta-feira, 7 de julho de 2010
PRA CIMA DE 15 ARROBAS
Rara era a família que não tinha no seu quintal um espaço para criar um porco. Engordado com “fraternal carinho”, havia um amor desmedido entre o dito e quem lhe dava de comer. O primeiro comia com sofreguidão as sobras dos legumes e do pão ou os figos caídos da árvore com que era mimado na “época deles” o segundo via com bons olhos o apetite do quadrúpede e perspectiva vê-lo dependurado pelos tendões traseiros na “chambaril” da adega.
A cumprir-se o acordo tácito entre ambos e não havendo maleita que contribuísse para este incumprimento, o destino do suíno estava traçado desde o dia em que fora adquirido na feira. Muita farinha, muita casca de laranja, “camas” mudadas de quando em vez, faziam dele objecto de invejosa observação por parte dos vizinhos – belo animal, sim senhor… pra cima de 15 arrobas, não? Porcos havia que davam mais carne que toucinho, mas quase tudo era comestível. Das partes interiores da façoila (as molejas, se não estou em erro), às tripas lavadas em água abundante e esfregadas com muito limão, às gorduras retiradas à carne, que serviriam para os enchidos, ao sangue, aproveitado para fazer morcelas, tudo era aproveitado e guardado. Depois de retalhado e divididas as peças eram acondicionadas em salgadeiras de madeira e mais tarde em arcas frigoríficas.
Ao matador competia ter as facas afiadas, ser destro e certeiro. Aos demais homens, exigia-se que fossem suficientemente fortes e experientes para reter os arremessos da “besta ferida de morte”. Às mulheres ter a água quente e os panos a jeito, bem como o alguidar de barro vidrado que receberia o jorro do sangue quente que era aspergido da ferida mortal em impulsos iguais aos roncos agudos que soltava, cada vez que a faca entrava, ou saia. A “ciência” estava em mexer bem, com colher de pau, para não coagular. Aos rapazes, (as meninas onde estavam?) era-lhes dado a bexiga, aventada a sopro, para jogarem à bola.
Quinze arrobas de porco dava trabalho a todos, desde manhã bem cedo ao fim da tarde, mas era sinal evidente de que tinha valido a pena esperar para o fazer, mesmo que tivessem de comprar uma nova salgadeira, ou faltasse espaço na larga chaminé para curar as varas do enchido. Belos tempos!
CONFRADINAS DE COTIM OFICIAL
Muitas confrarias, tem no seu seio, (ups!!) mulheres, outras não. Por exemplo a Confraria do Vinho do Porto tem, a do Bacalhau também, a do Toiro Bravo idem, a das Tripas à Moda do Porto idem-idem, mas, na Confraria Gastronómica de Almeirim, mulher (por enquanto) não veste a “farda”.
Como é que chamamos às ditas? De tão óbvio até irrita, confreiras, naturalmente. Então e a fardeta, como será? Se os janotas (atentem nas fotografias de grupo pra ver o quão “elegantes” são os nossos confrades) vestem de “cotim oficial” – calça, colete e jaqueta de cinza mesclado - sapato de salto de “prateleira” (pra segurarem as esporas???), alva camisa, barrete ribatejano ao ombro (ou enfiado até às sobrancelhas, quando a situação é solene) e “gargantilha” com as cores de Portugal de onde pende uma pequena colher de pau, numa alusão mais que óbvia, à Sopa da Pedra. Da lapela da jaqueta pins e demais emblemas competem entre sí pela melhor posição na farda. Então e elas? Para elas, têm o Confrade Mor de contratar a Fátima Lopes ou o Buchinho, para inventar os “trapinhos” (como se faz com os jeitosos da Selecção de futebol), pois como sabeis elas são mais “finas” e, francamente, à falta de melhor chapéu, acho difícil “enfiar-lhes o barrete". Penteados caros tapados com condoms de lã verde, não tou a ver. E depois, trocarem os colares de pérolas (falsas) ou qualquer outra bijutaria colorida, pelo característico pingente de madeira que remata a gargantilha, mais uma vez, não estou a ver.
Mas, à parte a questão da fardeta, as mulheres da nossa terra sempre estiveram ligadas aos tachos. Talvez o velho Bocage, que tinha dedo prós temperos, lhes fizesse frente, tudo o resto eram anónimas senhoras (saudades de D. Mariana) que herdavam das mulheres da família, um saber fazer que passava entre gerações.
Por isso faz todo o sentido “aceitar” as damas, para além de dar perfume a essa cambada de “pecadores da gula”, vai elevar os padrõezinhos.
terça-feira, 6 de julho de 2010
AUGUINHA ESQUINHA
"No Inverno há a necessidade de ingerir alimentos mais energéticos para manter a temperatura corporal. Já no Verão, o corpo pede um consumo maior de líquidos", dizem os cientistas. O que eles dizem, por norma, (se foram isentos e não quiserem influenciar o resultado) é que conta. Mas deve entender-se por líquidos aqueles que não tenham (muito) teor alcoólico. Eu percebo da dificuldade de alguns em trocar a "mineral" pela "cevadal". O organismo pede líquidos, mas o paladar também tem voto na matéria e dai escolher entre acompanhar a sardinha assada com o mais puro dos líquidos ou uma "estupidamente gelada", que mesmo dentro do frigorífico, nos faz parecer o cão do Pavlov. Isto para não falar dos brancos leves, rosés ou frisantes, que nos deixam reféns do copo seguinte... "quanto mais bebemos, mais sede temos". Por isso, meus amigos, escolham bem o que beber, estamos no Ribatejo é certo, mas como já deve saber, não temos esqueleto de ferro por isso não há o perigo de oxidarmos por dentro e com isso fragilizarmos a estrutura. Bebam água e guardem a bela da cerveja para acompanhar o tremoço que, como sabeis, é o nosso marisco mais popular.
Conselhos de Frei João Frade
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Conselhos de Frei João Frade
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segunda-feira, 5 de julho de 2010
GRELHADOS & ASSADOS
Não tenho nada contra os grelhados, nem contra os assados, aliás, uma entremeada alourada em fogo lento é do melhor que há. Contudo, como sabeis, prefiro o apurado da sopa feita com tempo, transformando o palato num carrossel de sensações. Com as altas temperaturas com o sol nos tem brindado nestes últimos dias, o perigo espreita próximo de qualquer grelhador. A segurança passa a ser fundamental (e até obrigatória), por isso, afaste das fontes de calor o que possa ser inflamável ou combustível. Tenha por perto um balde com água (ou mesmo um extintor), pronto para qualquer eventualidade (previsível neste dias de canícula) e escolha as horas mais propícias para fazer os seus grelhados sem grandes tormentas. Amigo, este é um aviso para reter, e “quem o avisa, seu amigo é”. Ponha as bebidas no congelador, esfregue com sal grosso as carnes temperadas, ponha o carvão ao rubro, mas tenha sempre à mão, a água, a eterna arqui-rival do fogo. Bem hajam!
Conselhos de Frei João Frade
sábado, 3 de julho de 2010
CONSELHOS DE FREI JOÃO
Agora que o calor aperta (desculpem lá meus amigos) tenho de fazer a minha retemperadora sesta. E não há nada que me tire da sombra fresca às horas mais quentes do dia. Bem sei que o conselho é tapar a cabeça e beber líquidos, por causa dos desfalecimentos e das insolações, pra mais, se forem pessoas com a minha vetusta idade, estes recados são mesmo para levar a sério. E depois, este meu hábito, pesado, escuro e quente (quant’a pode) e os vapores da cozinha, dão-me um desconforto que só Ele sabe. Por isso meus amigos não abusem do sol, vistam roupas leves e não se exponham muito, bebam uma branco frutado e fresquinho (com moderação, claro está)e se a sopa estiver quente… soprem!
CONSELHO DE FREI JOÃO
Agora que o calor aperta (desculpem lá meus amigos) tenho de fazer a minha retemperadora sesta. E não há nada que me tire da sombra fresca às horas mais quentes do dia. Bem sei que o conselho é tapar a cabeça e beber líquidos, por causa dos desfalecimentos e das insolações, pra mais, se forem pessoas com a minha vetusta idade, estes recados são mesmo para levar a sério. E depois, este meu hábito, pesado, escuro e quente (quant’a pode) e os vapores da cozinha, dão-me um desconforto que só Ele sabe.
Por isso meus amigos não abusem do Sol, vistam roupas leves e não se exponham muito, bebam uma branco frutado e fresquinho (com moderação, claro está) e se a sopa estiver quente… soprem!
Por isso meus amigos não abusem do Sol, vistam roupas leves e não se exponham muito, bebam uma branco frutado e fresquinho (com moderação, claro está) e se a sopa estiver quente… soprem!
sexta-feira, 2 de julho de 2010
POSTAL ILUSTRADO A CORES
Se ao sair de Almeirim, pela “porta” sul, deixar para trás a Quinta da Alorna e olhar à direita na direcção do Tejo, para terrenos de pasto desta mesma herdade, onde cavalos de raça pastam em liberdade misturados com as cores que anunciam o Verão, verá um “postal” a merecer um instantâneo. Só por distracção não reparamos nessa dádiva da natureza.
Finais de Maio é a altura ideal para observar do que aqui se fala, mas a paisagem está lá, podendo ser vista em qualquer altura do ano. A hora do dia é importante, e a forma como olhamos também. Se for ao volante, atormentado pelo tempo que já não tem, preocupado com as mil coisas que tem de fazer, não vai ver coisa nenhuma, vai passar pela paisagem como “cão por vinha vindimada”.
Almeirim oferece aos interessados, um conjunto de “postais ilustrados” à espera de serem vistos, a desvantagem é que tem de percorrer o “álbum” de automóvel, tem de subir à serra e olhar a charneca, tem de perscrutar a zona alta da Raposa, os moinhos de água – ou o que resta deles – da Ribeira de Muge, os campos que outrora foram de arroz, a caminho de Marianos, o ritmo das vinhas tratadas com mestria, o Tejo e a prata das suas águas, enfim… mil coisas para ver que, embora não catalogadas,fazem parte do nosso património paisagístico a proteger. Já agora, leve a “plingráfica” consigo.
HOMEM NÃO ENTRA
Foram excluídos os moçoilos e quanto a isso nada a fazer. Ao contrário do primeiro evento que se chamou “Miss & Mister Almeirim”, onde os dois géneros estavam a concurso, desta vez só vamos apreciar fêmeas… novas, sim, porque o limite de idade, para poder participar no “Miss Ribatejo 2010” é de 25 anos, podendo qualquer moçoila que tenha um palminho de cara e bem mais de corpo, participar.
É exigido ter 16 anos feitos, para se candidatar ao casting - 17 de Julho, Cinema de Almeirim – e boa figura para não envergonhar o Ribatejo. A passarelle vai ser montada no palco principal do Pão Vinho & Cª. (em dia ainda a definir) e até lá, as “queridas lindas”, vão ter de testar o vocabulário para responder às questões do júri e treinar andar com saltos altos para não fazer triste figura. Os prémios, não sendo, a nosso ver “tentadores”, são bastante interessantes e convidam à participação. A Argentina (não é a senhora da peixaria… é mesmo o país do futebol), conhecida também por dar ao mundo mulheres “campeonas” mundiais de beleza, devia por os olhos neste evento, afinal temos afinidades com as pampas argentinas, estas também têm os seus campinos e o nosso Ribatejo também tem os seus gaúchos.
A verdade é esta, se não se inscreverem as “cinderelas” vamos ter de gramar com o que sobra ou, em desespero de causa, chamar ao desfile um desses “metro”, bem maquilhado e de pêlo rapado, que à distância e sob os holofotes do palco, nos deixa a dúvida se é ela ou ela. Por isso, oh mãezinha querida, deixe a sua filhinha linda mostrar o “trikini” cavado que a gente promete aplaudir.
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